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Italo Calvino concilia realidade e utopia em "O Dia de um Escrutinador"

A Cia. das Letras lança no Brasil obra originalmente publicada há 40 anos, em que o autor faz uma análise crítica da Itália no pós-guerra, usando a arte da narrativa para discutir o comunismo

Por Agencia Estado
Atualização:

Nos anos 50, a Itália ainda se recuperava do trauma fascista, com a resistência e o neo-realismo influenciando seus escritores, Cesare Pavese e Elio Vittorini à frente. Naquela década, porém, os sonhos desaparecem, pois a realidade e a história impõem a própria força, e a burguesia torna-se mais poderosa do que fora anteriormente. O rompimento do encanto influencia decisivamente a obra de Italo Calvino (1923-1985) que, da fábula e do sonho, condiciona seus textos à razão. Foi nessa época em que ele começou a escrever O Dia de um Escrutinador (96 páginas, R$ 21), que a Companhia das Letras, editora disposta a oferecer sua obra completa, lançou recentemente. Calvino, italiano nascido em Santiago de las Vegas, Cuba, começou a escrever o livro em 1953, mas só conseguiu terminá-lo e publicá-lo dez anos depois. Foi o tempo que ele julgou necessário para analisar criticamente tanto a situação de seu país como as experiências semelhantes às vividas por seu personagem, colocando a arte da narrativa para discutir especialmente a importância do comunismo. É o que explica a construção do enredo, que se concentra no tamanho de um conto alongado: Amerigo Ormea, militante do Partido Comunista, é mesário e supervisiona o processo de votação no Cottolengo, um hospício de Turim. Em meio a eleitores tão incomuns quanto anões, coxos, cegos e deficientes mentais, ele se pergunta o que faz dele um cidadão responsável e um eleitor consciente - e não um louco. A leve ironia com que conduz a história faz com que Calvino supere os limites do realismo e do humano para, na voz de Ormea, contestar uma série de questões existenciais, fragilizando verdades apontadas como indestrutíveis. Afinal, até que ponto é válida a obrigação de todos votarem? Como determinar a normalidade de um cidadão? As questões surgem no pensamento de Ormea, durante um dia que prometia ser corriqueiro. E surgem diante da visão terrível da situação dos pacientes: como a de uma mulher sem pernas que se arrasta em um banquinho ou a de uma freira deitada numa maca, com a expressão de quem se afoga no fundo de um poço. O momento crucial acontece quando um pai alimenta com uma amêndoa o filho deficiente - Calvino, por meio de Ormea, discute assim as diversas formas de amor. A obra do escritor italiano tomou novo curso depois dessa fase, em que a razão pura aos poucos recorre também à fantasia e à alegoria para compreender a complexidade daquele momento da história. Leitor voraz de Voltaire naquela época, Calvino busca impregnar o reformismo iluminista aliado ao fantástico em sua escrita. É dessa fase o início da trilogia Os Nossos Antepassados, com O Visconde Partido ao Meio (1952), seguido de O Barão nas Árvores (57) e O Cavaleiro Inexistente (59). Em um mundo que dificulta a realização dos sonhos, acreditava Calvino, não resta outro caminho à razão e à fantasia que contemplá-lo do alto. Assim, ao conciliar literatura e sua vida, Italo Calvino fazia o mesmo com a utopia e a realidade. O Dia de um Escrutinador, de Italo Calvino. Companhia das Letras, 96 págs., R$ 21.

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