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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Isto é Esparta?

No mundo real, o governo espartano era voltado à negação dos valores democráticos

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Atualização:

A grande imprensa, em geral, retrata o Irã como um elemento desestabilizador do equilíbrio da geopolítica global. Nossas agências de notícias, quase todas ocidentais, apresentam algumas versões que encontram eco umas nas outras. Para contrapor um unilateralismo, surge outro: os EUA são o grande demônio e todos os países são cordeiros inocentes esmagados pelo poder de Washington. Está na hora de o senso crítico superar a fase Chapeuzinho Vermelho versus Lobo Mau. Os países têm interesses e não amigos. Relações internacionais tratam, dominantemente, de poder, raramente de moral e de bons costumes. Vou aproveitar a proximidade da data para lembrar um fator importante. A 19 de agosto de 1953, um golpe orquestrado pelo governo britânico e dos EUA derrubou um governo legitimamente eleito: o primeiro-ministro Mohammed Mossadegh, do Irã. Nesta semana, lembramos 67 anos de uma longa crise que foi semeada antes e que continua dando dividendos até hoje. Precisamos retroceder um pouco. País populoso e rico em recursos de petróleo, o Irã era uma peça-chave do esforço da Segunda Guerra Mundial. Era pelo território iraniano que parte da ajuda norte-americana chegava aos soviéticos na luta contra o nazismo. Os recursos atraíram a operação Countenance em que forças britânicas e soviéticas atacaram o país. O velho Xá causava alguma desconfiança, entre outros motivos, pelas simpatias com o Eixo Fascista. Seu herdeiro tinha sido educado na Suíça e era considerado favorável ao Ocidente. Além da invasão do país e controle dos recursos nacionais, as potências ajudaram a afastar o antigo governante e instalar no poder Mohammad Reza Pahlevi, que governaria o país de 1941 até sua deposição, em 1979. Aos 22 anos, o novo Xá deveria ser a cabeça de um governo ocidentalizante e favorável aos interesses estrangeiros no óleo do país. O mundo persa estava sendo empurrado para uma órbita de ambições externas. Foi na capital, Teerã, que se realizou a importante reunião de Churchill, Stalin e Roosevelt, entre o fim de novembro e início de dezembro de 1943. As fronteiras da Alemanha e da Polônia foram definidas ali, bem como o destino dos países bálticos. Terminada a guerra, a estabilidade interna não ocorreu. Houve um atentado contra o jovem Xá, em 1949. Avançava um movimento que limitava os poderes do soberano e aumentava a interferência dos representantes do Parlamento, criando algo similar a uma monarquia constitucional. O movimento parlamentar e popular apontava para um forte desejo de acabar com o controle abusivo da companhia britânica de petróleo (Anglo-Persian Oil Company – Apoc). A nacionalização ocorreu em 1951. A resposta ocidental às leis iranianas foi um boicote duríssimo. A exportação do “ouro negro” caiu de 242 milhões de barris em 1950 para 10,6 milhões de barris em 1952. A sociedade iraniana viveu uma crise enorme. A pressão continuou. Em meio a tantos problemas, um referendum deu o poder para o primeiro-ministro dissolver o Parlamento. Os votos para o ato foram de mais de dois milhões a favor e 1,3 mil contra. Vitória esmagadora e popular! Os iranianos apoiavam a nacionalização e o poder do primeiro-ministro Mossadegh. Foi a gota d’água. Os governos dos EUA e britânico lançaram uma campanha forte para desestabilizar o de Teerã. O serviço secreto de Londres e a CIA despejaram milhões no país para abastecer agitadores e propaganda contrária. Reza Pahlevi fugiu para a Itália em meio aos tumultos. No dia 19 de agosto de 1953, o golpe tinha sido vitorioso. Um primeiro-ministro eleito dentro do sistema defendido pelo Ocidente foi derrubado em época de paz em nome de interesses econômicos. O Xá poderia retornar e garantir amplas alianças com os EUA e as potências ocidentais. Começou um governo repressivo e que sempre estaria marcado pela desconfiança de que o Xá era um mero testa de ferro de interesses estrangeiros. A pobreza da maioria da população, a repressão oficial e a vida extravagante e opulenta da família real eram uma combinação explosiva. A festa de comemoração do Império Persa, em 1971, foi extravagante e abusiva para o ambiente que se formava. Abriu-se caminho para o afastamento entre o clero xiita e a coroa. Na origem dos problemas? O golpe de 1953, um ovo de serpente colocado no ninho iraniano. Muitos ficaram espantados no Ocidente quando as famosas “armas de destruição em massa” alardeadas pelos invasores norte-americanos não foram encontradas no vizinho Iraque. Os iranianos talvez tivessem menos crença na justificativa do governo Bush, apesar dos atritos Bagdá-Teerã. Para a média da opinião pública dos mais de 80 milhões de iranianos, as expectativas com os bons propósitos ocidentais eram bem baixas. As pessoas mais rasas gostam de pensar o jogo mundial como um grupo de soldados espartanos resistindo, cheios de boas intenções, contra um exército persa invasor (ou seja, iraniano) como no filme 300 (2006, Zack Snyder). O mundo é mais complexo do que gritar “This is Sparta!” (Isto é Esparta!). Lembrem-se sempre: no mundo real, o governo espartano era autoritário, oligárquico e voltado à negação dos valores democráticos. Liberdade aparece no cinema e nos discursos do presidente Bush. Fora dali, só há interesses. É preciso ter esperança além do plano raso dos slogans.

Opinião por Leandro Karnal
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