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Isso não existe

Estava subindo a avenida quando vi a cachorra pela primeira vez. Desgovernada, ela corria ladeira acima, na contramão do trânsito e na faixa de ônibus, desviando assustada dos veículos que passavam. Tentei alcançá-la, mas ela era muito rápida e perdi seu rastro num cruzamento. Por isso, continuei meu caminho, esperando que a cachorra encontrasse o dela. 

Por Vanessa Barbara
Atualização:

Ao sair do supermercado, duas horas e um temporal depois, peguei uma rua paralela, e lá estava de novo a pequena quadrúpede: bebendo água da sarjeta e parecendo ainda mais assustada. Hesitei por um minuto. A cadela, apavorada, disparou rumo à avenida. Quase foi atropelada por uma moto e um caminhão, e, por um instante, seria esmagada se não ouvisse a buzina de um ônibus. Larguei meu carrinho de compras e fui atrás dela, atraindo-a para a calçada. Ela se assustou, recuou, mas esperei que se aproximasse. 

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Foi assim que, numa sexta-feira, levei para casa uma cachorra de oito quilos no braço esquerdo e um carrinho cheio de bananas e figos no direito, descendo uma escadaria enquanto tentava acalmar o animal. 

Nunca tive um cão; entendo apenas de tartarugas e de distúrbios do sono. Corri para perguntar aos amigos “o que cachorros comem” e o que fazer com a peluda, que a essa altura estava parada no meio da sala, ainda tremendo. Arrumei ração e uma coleira, e passei a divulgar fotos pela internet em busca do dono. 

A vira-lata tem aproximadamente dois anos, é preta com tufos de pelos brancos, muito dócil e treinada. É de porte médio e possui um par de olhinhos castanhos meio chorosos. Estava sem coleira e não é castrada, mas tem todo jeito de ter tido um dono: só faz suas necessidades quando a levo para passear, é bem cuidada e desconhece a típica satisfação canina de destroçar móveis estofados. Dorme onde lhe colocam uma almofada e quase nunca me desobedece. Quando está feliz, abana o rabo tão vigorosamente que parece um helicóptero prestes a decolar. 

Passei o fim de semana perambulando com ela pela região, notificando taxistas, cabeleireiros, porteiros e transeuntes. Levei a cadela a um veterinário, que me disse que ela está bem – só muito traumatizada e triste, possivelmente com saudades do dono. Cadastrei a canina em sites como cachorroperdido.com.br e procurasecachorro.uol.com.br, postei sua foto no Facebook e alertei os pet shops da região. Imprimi cartazes. Quase telefonei para o detetive Marcondes, que encontrou a cadela Branquinha e descobriu o paradeiro do shih tzu Hulk. 

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Lembrei da história de um amigo, que, certo dia, explicou para a filha de 6 anos que cães vira-latas eram aqueles que reviravam lixeiras na rua, pois ninguém os queria. “Isso não existe”, ela respondeu, recusando-se a viver num mundo em que há cachorros desamparados, maltratados, esquecidos. 

Enquanto escrevo, a cadela lambe o meu dedão do pé. 

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