Ismail Xavier, um crítico sem fronteiras do cinema nacional

Professor da ECA iniciou formação intelectual com Paulo Emilio Salles Gomes. Ele está entre os indicados deste ano ao Prêmio Multicultural Estadão

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Por Agencia Estado
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Entre os indicados para o Prêmio Multicultural Estadão deste ano, iniciativa do Estado com patrocínio da empresa Serasa, está o estudioso de cinema Ismail Xavier. Quem conhece o meio cinematográfico sabe que o nome de Ismail se associa imediatamente à qualidade de uma análise arguta, profunda e ao mesmo tempo original dos filmes brasileiros. Embora não seja ensaísta dedicado exclusivamente ao cinema nacional, é nele que Ismail encontra seu campo mais fértil de pesquisa, como atestam dois dos seus trabalhos fundamentais, Sertão Mar e Alegorias do Subdesenvolvimento. Ismail é docente na ECA-USP e suas preferências, como analista, se explicam por sua formação. Cursou o Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e quando teve de escolher uma profissão optou pela engenharia. Entrou na Politécnica, mas, ao mesmo tempo, cultivava seu gosto pelo cinema. Lembra-se dos filmes marcantes que viu, em meados dos anos 60, anos vitais da formação: Bandido Giuliano, de Francesco Rosi, Viver a Vida, de Jean-Luc Godard, Ladrões de Bicicletas, de Vittorio de Sica, Alemanha Ano Zero, de Roberto Rossellini, A Doce Vida, de Federico Fellini, Hiroshima, Meu Amor, de Alain Resnais e, claro, Cidadão Kane, de Orson Welles. O jovem cinéfilo entrou como sócio da Cinemateca Brasileira, que então funcionava no prédio dos Diários Associados, na Rua Sete de Abril. Fez curso de introdução ao cinema no Fotocine-Clube Bandeirantes e começou a programar mostras de cinema na Poli. A partir dessa atividade de cineclubismo (tudo sempre começa por aí), passou a conhecer críticos e cineastas convidados para debater os filmes: Maurice Capovilla, Rogério Sganzerla, Paulo Ramos e Gustavo Dahl - quando o atual presidente da Ancine (Agência Nacional de Cinema) passava por São Paulo. Já redefinida a opção profissional, conheceu na ECA algumas pessoas que tiveram grande influência, como Rudá de Andrade, Jean-Claude Bernardet e, sobretudo, Paulo Emilio Salles Gomes. Como tinha jeito para a coisa, logo Ismail começou a escrever crítica. "A primeira que escrevi foi em defesa de Terra em Transe, em maio de 1967, para um jornal estudantil", conta. Em seguida, em "bases mais profissionais", assinou a resenha de Todas as Mulheres do Mundo, "muito simpática ao filme e ao Domingos Oliveira, mas com aceno às suas limitações temáticas", acrescenta. A soma de influências, amizades, leituras e filmes vistos na juventude é decisiva para um destino, sabemos todos. Para Ismail, o biênio 1967-68 "foi o mais rico e mais decisivo na formação de gosto e na intensidade de uma experiência cultural e política vivida com certo messianismo (afinal, estávamos decidindo o futuro do País e da humanidade!)", diz. A tal ponto que considera suas obras posteriores, em especial Sertão Mar e Alegorias do Subdesenvolvimento, ajustes de conta com esse período da juventude: "Um esforço de compreensão do que havia sido a ´idade de ouro´ dos meus entusiasmos", define. Para completar a sua formação - Ismail acrescenta -, aquele fim de anos 60 foram tempos de muita leitura: Althusser, Lacan, Foucault, autores de rigueur na época. "Dava para montar um projeto de sacerdócio teórico sem culpa de não estar fazendo a revolução, pois a teoria já o era", comenta. Sem separar o pensamento da prática, mergulhou também na formação especializada, como montador de filmes na ECA, em 1970. "Essa experiência foi fundamental e acho que até hoje tenho olhar de montador", diz. "É o que saco de imediato nos filmes, o que ajuda para quem faz análises que começam pela segmentação (macro) e seguem pela análise plano a plano (micro)." São detalhes técnicos, importantes, mas que ganham coerência a partir de uma influência fundamental, a de Paulo Emilio Salles Gomes. Eram os seminários na casa de Paulo Emilio que definiam o horizonte da pesquisa, com um deslocamento gradual para os assuntos brasileiros. Os seminários, lembra-se Ismail, eram um show de inteligência e de visão histórica. "Para ele, mais importante do que as grandes teorias ou ideologias, era a atenção paciente e sistemática dirigida ao nosso contexto imediato. Saber de onde você está falando. Compreender a sociedade onde você vive, a cultura onde você está inserido. E intervir a partir daí", diz. A questão principal, para o intelectual, era (e continua sendo) a seguinte: conheço o Brasil? Sei do que estou falando quando falo em Estado brasileiro, em classes, em cultura, em vanguarda? Enfim, são questões prévias, que talvez nem passem pela cabeça de um crítico de cinema formado hoje em dia. Mas naquele tempo eram fundamentais para formação de um intelectual de qualquer área, incluindo o cinema. Enfim, a lição de Paulo Emilio, muito bem assimilada por Ismail, era juntar cultura e política, mas pisando em solo firme - dando mais valor ao conhecimento da realidade imediata do que à coerência interna de modelos teóricos. Esse back ground ainda foi lapidado pelos anos que passou em Nova York estudando com Annette Michelson, "uma formalista de carteirinha", que o ajudou a perceber as formas, ver o que estava implicado nelas. Ler imagens, vendo e revendo os filmes de Eisenstein, Bresson, Godard e os do cinema underground. Com essa bagagem, Ismail pôde construir uma ferramenta de análise própria, eficaz, sólida e original. Com ela, pretende propor uma nova maneira de ler os filmes brasileiros, "para além de enredo e personagens", como costumam limitar as resenhas jornalísticas. Esse "método" (as aspas querendo dizer que Ismail acha o termo muito pomposo) compreende algumas disposições básicas como: senso de estrutura combinado com análise estilística e premissa de tipo histórico-social. Como se vê, há aí uma herança estruturalista, porém desintoxicada por uma grande variedade metodológica, e mais a premissa (que vem de Antonio Candido, Roberto Schwarz, mas poderia ter vindo de Adorno) de que a forma é uma experiência ou, se quisermos, um "conteúdo social condensado". Esse arsenal analítico é que permite a Ismail olhar para uma seqüência de Barravento e ver que no primeiro longa-metragem de Glauber Rocha a discussão religiosa passa por uma sucessão de planos do corpo de uma personagem, seguido por um movimento que sobe de uma palmeira e termina no céu. Ismail Xavier é autor de dez livros e tem no prelo O Olhar e a Cena: Molduras Clássicas, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. Outro volume praticamente pronto envolve uma coleção de ensaios e críticas sobre filmes brasileiros de várias épocas, incluída a produção recente. E há um terceiro sobre a noção de alegoria nacional em vários países. O veio do cinema nacional lhe parece muito fecundo para um analista: "Ele oferece ao crítico material para sua reflexão que pode ser feita sem nenhum sentimento de inveja diante de um crítico francês ou um crítico alemão de hoje", diz.

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