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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Irmãos

A morte, com a qual temos um inevitável encontro, nos sequestra para sempre

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Atualização:

Deprimido, vou ao Bar do Soares e me encontro com um sumido Pedro Memórias. Acompanho-o numa cerveja. Falamos deste cenário de autocastração (por excelentes razões, como ocorre no caminho dos radicalismos e das ditaduras) do Brasil por nós mesmos, mas noto que há nele algo de pessoal e íntimo na sua tristeza. Como amigo de infância, pergunto o que – além do incêndio do Museu Nacional – houve e fico sabendo que Pedro Memórias perdeu mais um irmão. Desta feita, o câncer levou o seu último irmão. 

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O irmão, Ricardo Memórias, foi enterrado recebendo imóvel na sua armadura de carne fria na qual se transformou, as lágrimas da esposa, dos filhos e das netinhas que “choravam de dar pena”. Ao usar esse lugar-comum, os olhos molhados de velho do meu amigo Pedro encheram-se de lágrimas. Tirando automaticamente um imaculado lenço de sua desbotada bermuda, ele prosseguiu na sua dor, acompanhado pelas minhas ladainhas melancólico-teóricas, pois como diz um sábio: “Quem honra a vida, pensa inevitavelmente na morte”. 

Eu que ouvi falar da morte desde que me entendo por gente, e fui atrás do seu paradoxo além do meu coração para encontrá-la nos livros, procurei aliviar o amigo com a seguinte observação:

– A morte é a experiência mais paradoxal da consciência, justamente porque o morto que a experimenta e vive, dela não fala. A inescrutabilidade da morte, jaz nessa contradição. Dividimos tudo uns com outros, mas a morte, com a qual temos um inevitável encontro, nos sequestra para sempre. E assim ninguém sabe, nem mesmo de um filho, pai, mãe, irmão ou pessoa amada como é morrer. Os sonhos, doenças, aventuras, delírios e viagens nos levam ao liminar, mas dele voltamos. Não podemos, porém, compartilhar a morte porque ela só nos deixa o morto. A morte, na sua indiferença absoluta, é o limite da sedução dos engajamentos sociais. Por isso, ela tem o poder de fechar feridas, enterrar ternuras e inaugurar saudades. 

Diante do morto, falamos baixinho e choramos por amor. Aquele contraditório amor que tudo perdoa. 

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– Ele era o meu último irmão – disse Pedro Memórias. Éramos seis e hoje somos apenas eu, o mais velho, e minha irmã Ana, a mais nova.

Balbuciei alguma coisa ainda mais patética. Mas dele veio um jorro de pensamentos engavetadas na experiência da fraternidade.

– Para mim, o “filho único” formava uma aristocracia em casas como a nossa, onde eu dormia em cama beliche. Estava convencido de que o nascimento em série dos irmãos era um sinal de perda de afeto. Como compreender que o amor materno é um céu cheio de estrelas? Recebi o papel do filho “mais velho” como exemplar e virei um egoísta. Tinha enorme inveja de quem era filho único. E quando falo com eles, ouço que queriam muito ter irmãos. Um amigo querido, membro dessa confraria dos filhos solitários, chegou a inventar uma irmã e, como me confessou numa carta confortadora, só foi conhecer a inveja, a competição, a indiferença e a ingratidão quando adulto. Bem-aventurados os que vivem tudo isso em casa...

– Agora, termina Pedro Memórias, Ricardo surge dentro de mim ao lado de Fernando-e-Romero (os gêmeos criados como uma só pessoa) e Renato, o caçula dos homens – o campeão de iatismo; e a minha amada irmã Ana, a caçula que chora ao meu lado...

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Registro minha alegria pelo nascimento de Carlos Diegues como um imortal na ABL. Cinema é uma outra “letra” e Cacá, mestre na arte de ver o mundo por meio de imagens em movimento, vai enriquecê-la. Ademais, ele é um “homo humanus”, como dizia Settembrini a seu pupilo Hans Castorp na montanha mágica de Thomas Mann. Quando eu sofri uma perda irreparável, ele foi bom como um irmão. E a bondade não deve ser esquecida neste mundo de agressões, invejas e enfrentamentos no qual só quem presta são os nossos. 

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Opinião por Roberto DaMatta
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