PUBLICIDADE

Investigação sobre o País em nova edição

Formação do Brasil Contemporâneo, obra dos anos 1940 do historiador Caio Prado Jr., é relançada

Por ELIAS THOMÉ SALIBA
Atualização:

"Uma viagem pelo Brasil é muitas vezes uma incursão pela história de um século ou mais para trás. Chega uma hora que é preciso fechar os livros e partir para o conhecimento da realidade, levantando os problemas in loco. Disse-me certa vez um professor estrangeiro que invejava os historiadores brasileiros que podiam assistir pessoalmente às cenas mais vivas do seu passado." Embora marginal, esta observação de Caio Prado Jr. talvez seja decisiva para repensar alguns dos processos de elaboração de seus livros. O contato com a realidade e o gosto de sair viajando por aí certamente evitaram que ele esquecesse a singularidade da história brasileira. Ele tinha apenas 27 anos quando, na recém fundada Faculdade de Filosofia da USP, em 1934, entusiasmou-se pelas lições do professor Pierre Deffontaines, o qual, mais do que um estudioso de gabinete, prezava uma geografia que se nutria das viagens e relatos dos contrastes ambientais e humanos dos mais variados lugares. Isto apenas se confirma nas inúmeras fotos e mapas das viagens de estudo de Caio Prado Jr., reproduzidos em Formação do Brasil Contemporâneo que sai, em nova e caprichada edição, acompanhada de entrevista com Fernando Novais e posfácio de Bernardo Ricupero (Companhia das Letras, 449 págs., R$ 49,50). Para as novas gerações de leitores talvez seja demasiado ocioso e repetitivo chamar de "clássico" um livro que, publicado em 1942, acabou por se tornar parte irreconhecível da bagagem intelectual de muitas gerações de estudiosos dos assuntos brasileiros. Por muitos anos, ele virou uma espécie de pão cotidiano dos historiadores - aquela parte tão tácita da formação de cada um que, durante algum tempo, pouco se falava dele e de sua obra. Muitas das análises de Caio Prado contidas no Formação tornaram-se tão correntes entre os historiadores que estes passaram, quase naturalmente, a prescindirem de sua citação. E não por desonestidade intelectual, mas pelo fato de suas interpretações assentarem-se tacitamente à realidade, colando-se de tal forma a ela que toda citação seria redundante. Hoje, quase 70 anos depois da sua primeira edição, talvez seja preciso começar a enquadrá-lo numa daquelas prestimosas definições de "clássico" de Ítalo Calvino: "uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe". Se em alguns temas, o historiador demonstrou enorme sensibilidade antecipatória - como nos detalhados estudos da ocupação do território brasileiro, nos quais se revelam traços bastante atuais daquilo que hoje chamamos de "meio ambiente" -, noutros temas enroscou-se em excessos economicistas que o impediram de enxergar o crescimento de um mercado interno que, de alguma forma, alteraria tanto as regras do jogo quanto a força dos elementos envolvidos. Em afinidade com outros autores de sua geração - também "intérpretes do Brasil" -, não deixou ainda de superestimar o papel de um tipo de Estado nacional territorial, que já mostrava evidentes sinais de crise na segunda metade do século 20. A linguagem direta e despojada, de traços modernistas, mas ainda não inteiramente liberada de alguns poucos resíduos biológicos, comuns à sua época, pode provocar estranheza, sobretudo naqueles leitores tidos como "politicamente corretos". Ainda mais incompreensível aos novos leitores talvez seja o esforço de Caio Prado Jr. de abarcar a totalidade da história brasileira, projetando em todos os seus grandes temas - a colonização, a escravidão, a questão agrária, os movimentos sociais, a revolução burguesa - aquele brilho de luz que iluminaria as brechas para a transformação do País. Na atual guinada subjetiva da nossa cultura, impregnada de derrotismo utópico, isto deve soar algo inusitado para as novas gerações. De qualquer forma, ecoando intérpretes de outras gerações - como Euclides da Cunha ou Capistrano de Abreu -, Caio Prado diagnosticou o impasse estrutural da formação da nacionalidade brasileira, dilacerada entre dois núcleos opostos: o núcleo orgânico, constituído pelo sistema colonial de produção propriamente dito, e a sua periferia inorgânica, formada pela imensa massa populacional dispersa pelo interior brasileiro. "Impasses do inorgânico" - na feliz expressão da historiadora Maria Odila da Silva Dias - talvez seja o que melhor sintetize o âmago da obra de Caio Prado. Impasses que dependiam - e ainda hoje dependem - de outros fatores complexos para a sua resolução, não exclusivamente limitados à esfera da mudança revolucionária ou de simples ruptura com o passado. O que faz lembrar daquela outra definição de clássico sugerida por Calvino: "um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer".

 

*ELIAS THOMÉ SALIBA É PROFESSOR DE TEORIA DA HISTÓRIA NA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE RAÍZES DO RISO (COMPANHIA DAS LETRAS) 

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.