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Inventando um jeito diferente de brincar

Em Álbum das Figurinhas, o Balangandança usa o corpo para falar, de modo poético, sobre vida, dor, crescimento e morte

Por HELENA KATZ
Atualização:

Uma ideia engata em outra, que engata em outra, e assim vai indo, mas não vira uma fileira a ser puxada, como acontece com os carrinhos de lata e de papelão que aparecem em cena. Elas se enovelam por dentro, por fora, por todos os lados porque não estão, mas são o corpo dos seis excelentes intérpretes da Balangandança Cia. Esse elenco afinado, formado por Dafne Michellepis,  Coré Valente, Alexandre Medeiros, Maristela Estrela, Alan Scherk e Clara Gouvêa, apresenta aos sábados, às 11 horas, o espetáculo Álbum das Figurinhas no Sesc Consolação até 25 de maio (exceto dia 18, quando não haverá espetáculo).A beleza dessa obra está em como as ideias aparecem na forma de movimento. Para chegar a isso, foi necessário dedicar muito tempo ao projeto de inventar um jeito de fazer dança contemporânea para crianças. Fundado por Geórgia Lengos, sua diretora, o pioneiro Balangandança existe há 16 anos e, em junho, estreará outra produção: Ninhos, uma Performance para Grandes Pequenos.A principal conquista deste Álbum das Figurinhas é a sabedoria dos seus seis artistas em fazer do lúdico um material de composição coreográfica. Mais do que isso, aliás, pois a mesma linha que vai costurando coreograficamente suas danças também as descostura porque não usa o jeito habitual de ligar os conteúdos em uma narrativa. Quando se pressente o que vai acontecer, a coisa evapora, mas não some, só muda de lugar, pois reaparece mais adiante. Embora as figurinhas pertençam a uma estrutura, como ela tem outra maneira de se organizar, o grupo nos faz crer que estão todas soltas.A imagem disso está lá mesmo, no palco, exposta no móbile da cenografia, cuja leveza nunca traduz a complexidade da sua arquitetura. Um único resmungo vem porque móbile e bailarinos não se escutam. Com a muito bem concebida iluminação de Joyce Drummond, as trocas são primorosas quando cores e texturas vão aparecendo e desaparecendo. Como não se estabelece qualquer relação entre o móbile e os corpos, se fantasia como seria se o vento que os bailarinos sopram chegasse até ele, se os deslocamentos na velocidade da luz chegassem...Podemos caraminholar diversas associações com o que se apresenta, mas talvez não seja o melhor caminho a seguir para lidar com essa coleção de figurinhas. Um exemplo só: o da avozinha de 95 anos que viveu uma vida muito bem vivida, cuja pele enrugou depois de ter sido esticada enquanto ela crescia e enquanto se esticava, produzia dor. Sem dúvida, uma maneira poética de falar para crianças sobre vida-crescimento-dor-morte com uma imagem ancorada no corpo. Mas talvez não sejam associações dessa natureza as que fazem com que a plateia infantil fique grudada no espetáculo e aceite os convites para participar em dois momentos distintos, lotando o palco e mostrando com o que lá fazem que estão acompanhando/entendendo tudo.A companhia consegue produzir um atraente ambiente de presságio, no qual parece que tudo que está acontecendo apenas antecipa o seu próprio futuro. A qualidade da dança de cada um - uma sucessão de roçares, de esbarros e de montagens - não esquece de zelar pela precisão dos acabamentos, tem papel de destaque nessa construção. A trilha sonora editada por Kito Siqueira-Satélite Áudio das músicas compostas por ele, Coré Valente e o grupo se ajusta tão bem que vira a pele que estica e encolhe junto com o trabalho. E as escolhas cromáticas que Maíra Mesquita fez para o figurino rimam com o que vai acontecendo.Neste Álbum das Figurinhas latejam aqueles veios subterrâneos que ligam todas as fases da vida. Na aparência, um pórtico para a infância, mas quem aceita o convite e o transpassa encontra um dado caindo, virado no sete, como disse Carlito Azevedo no seu livro Sublunar (2001).

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