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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Intelectuais e política

Livro 'O Mito do Século XX' traz linhas reveladoras da cabeça de um fanático

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Atualização:

Terminei de ler Os Diários de Alfred Rosenberg 1934-1944, uma excelente iniciativa da Editora Crítica. A tradução é a tarefa árdua e bem realizada de Claudia Abeling. Rosenberg não é o nazista mais conhecido do grande público, mas era fundamental na máquina do Terceiro Reich. Nasceu na Estônia em uma família alemã báltica. Estudou engenharia e arquitetura na Rússia. Fugiu de lá com a Revolução Bolchevique e foi para a Alemanha. Entrou no partido nazista (NSDAP) antes de Adolf Hitler. Não era um grande orador. Seu antissemitismo virulento produzia artigos que foram chamando a atenção de outros e ele se tornou o teórico maior do grupo. Era o Spiritus Rector, o guia intelectual da Alemanha nacional-socialista. Nunca foi central no círculo de Hitler, porém era de uma fidelidade canina ao Führer. Seu livro de 1930, O Mito do Século XX, virou um best-seller com mais de um milhão de exemplares vendidos. É obra canônica do delírio antijudaico. Desenvolve pensamentos do século 19, especialmente de um dos grandes nomes divulgadores do mito da raça ariana, o britânico Houston Stewart Chamberlain.  Sua maior contribuição ao pensamento de então foi associar o movimento bolchevique com o judaísmo. Rosenberg escreveu: “O bolchevismo não foi e nem é a luta por uma ideia social, mas uma luta política do judaísmo de todos os países contra a inteligência nacional de todos os povos” (pág. 415). Também colaborou para a ideia de transportar todos os judeus para Madagascar e lá criar um lar judaico. Defendeu a posição em artigos. Depois mudou de ideia e optou pelo extermínio. 

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Seu cargo mais trágico foi ser o administrador das regiões ocupadas do Leste. No poder, implementou o ensaio violento da solução final e do genocídio. Foi um Reichsleiter, segundo cargo mais alto do partido nazista, um chefe que se reportava diretamente a Hitler e implementava suas diretrizes. Rosenberg registra no diário todas as manifestações do chefe para com ele: quando o austríaco toca no seu ombro, aperta suas mãos com força, etc. O engenheiro venerava o cabo. 

A publicação é precedida de textos muito bons sobre a biografia e as ideias de Rosenberg. O estudo introdutório sobre como os diários foram perdidos, reencontrados e reunidos desde o tribunal de Nuremberg é particularmente útil ao historiador. Sem as notas explicativas sobre nomes e fatos, o texto ficaria restrito aos especialistas. Ao final, há uma coletânea de artigos do nazista. 

O diário, em si, é um desafio denso. Estilo errático do autor que, por vezes, escreve em tópicos. Em meio a verborragias estranhas, surgem linhas reveladoras da cabeça de um fanático.  Terminei refletindo sobre um homem de inteligência mediana como Rosenberg e seu papel como intelectual de uma ditadura. A política tornou pessoas comuns grandes personagens. É o caso de Hitler, homem que consagrava senso comum com ressentimento profundo. A biografia de Ian Kershaw coloca uma pá de cal nas pretensões de quem ainda imagina o líder nazista como genial (Hitler, Companhia das Letras, 2010). Assim também um doutor em Filosofia pela universidade de Heidelberg, Joseph Goebbels (biografado por Peter Longerich, Editora Objetiva, 2014), não nos apresenta um gênio, mas um homem comum. Sem a crise e a política, Hitler teria, talvez, sido um pintor de aquarelas com uma banca nas ruas de Viena. Goebbels terminaria seus dias dando aulas de Filosofia em alguma cidade alemã. Rosenberg teria um escritório de projetos arquitetônicos. Os jogos da política tornaram três homens médios/medíocres em peças-chave do Holocausto. Uma frase fez com que eu parasse longamente para refletir. O ódio antissemita de Rosenberg, sua monomania, oferecia aos nazistas e ao povo alemão “a sensação de que suas bases ideológicas não se baseavam em idiossincrasias, fantasias de poder e sentimentos de ódio, mas, pelo contrário, derivavam de uma filosofia profunda e de fundamentações científicas. O próprio Rosenberg estava profundamente convencido disso. Muito antes de iniciar a redação de diários, seu pensamento movimentava-se em caminhos ideológicos sem espaço para análise crítica e que só permitiam à realidade ingressar no consciente para confirmar suas opiniões já consolidadas”. (pág. 23) 

O homem comum tem medos, ressentimentos, frustrações, aspirações e dores, como todos os seres humanos. Subitamente, surge nele uma ideia tênue, pálida no começo: todos os males do mundo são provocados por um grupo do qual eu já não gosto. Sim, meu fracasso não tem minha responsabilidade, no entanto é derivado da perfídia do grupo odiado. Ainda tenho dúvidas, pode ser que eu esteja delirando e, de repente, leio um artigo ou um livro (hoje seria um post). 

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Enfim, um doutor formado por uma universidade ou ainda um self-made intelectual mostram-me que não é minha mediocridade que pensa assim, pois agora tenho o endosso de uma cabeça pensante. Concordo com o sábio porque ele reforça o meu pensamento. Dialeticamente, recorro a um pensador (ou pretenso pensador) para que eu não precise mais pensar. O argumento de autoridade prevalece e cria-se um elo com energia para edificar Auschwitz. 

Rosenberg foi condenado à forca no tribunal do pós-guerra. Na prisão, seus últimos escritos mostravam a permanência inabalável do antissemitismo. Pergunta boa para o Brasil de 2017: por que alguém não muda de ideia mesmo quando todos os fatos desmentem sua crença? 

O livro Os Diários de Alfred Rosenberg faz pensar. Detalhe menor: à pág. 35, onde lemos “no outono de 1845”, deveríamos ler “no outono de 1945”. Quem dera eu fosse tão bom revisor dos meus textos como sou de texto alheio. Boa semana para todos.

Opinião por Leandro Karnal
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