Íntegra do texto 'A crônica de mortes anunciadas'

PUBLICIDADE

Por JESSICA WINTER - Bookforum
Atualização:

O romance de Hilary Mantel, Wolf Hall, de 2009, foi uma realização extraordinária, uma obra de integridade histórica e artística que não obstante conseguiu constituir-se num grande sucesso independentemente dos vários gêneros, gerações e sensibilidades. Sei de um adorador de Thomas Bernhard com 20 e poucos anos que ama o livro, e de uma senhora aposentada, uma fiel seguidora de Jodi Picoult, que o ama com a mesma intensidade. O romance pareceu algo intermediário entre o excelente seriado da rede Showtime, The Tudors, que tratava de maneira vigorosa, embora sem se preocupar com a fidelidade histórica da mesma crise da novela – o rompimento de Henrique VIII com Roma e o seu divórcio de Catarina de Aragão para casar-se com Ana Bolena, logo também caída em desgraça – e que, em seus pontos melhores gloriosamente incoerentes, sugeria um remake de Showgirls com o pano de fundo do Palácio de Whitehall. Em Wolf Hall, vencedor do Prêmio Booker, que esvazia o salão de peitos arfantes e sem nenhum resquício de arremedo dos Tudors, Mantel nos oferece a versão alternativa sofisticada, mas capaz de criar a mesma fascinação pelo Grave Drama do Soberano. Ela também nos brinda com uma surpresa fundamental, básica com sua escolha do seu solidário protagonista: Thomas Cromwell, o primeiro-ministro de Henrique VIII durante aqueles oito anos cruciais, retratado com um olhar penetrante em obras como o famoso retrato de Hans Holbein o Jovem, e a peça de Robert Bolt, A Man for All Seasons. (A respeito de The Tudors, Cromwell diz coisas como: “Tu, frade desavergonhado! Serás posto num saco, costurado e lançado ao Tâmisa se não segurares logo tua língua!” A autora inspirou-se neste personagem comumente visto como um vilão e o tornou um herói improvável, assim como fez com Robespierre em seu romance histórico A Place of Greater Safety (1992). E transformou Cromwell num infeliz saco de pancadas: nas primeiras páginas de grande impacto de Wolf Hall, o pai de Thomas ainda adolescente espanca o filho até deixá-lo quase à morte em uma rua de Londres. O rapaz foge sem olhar para trás: “Ele caminha pelas docas perguntando às pessoas: vocês sabem onde está havendo uma guerra?” Algumas páginas depois e 27 anos mais tarde – durante os quais Cromwell adquiriu uma boa formação no exterior onde se tornou um soldado e representante de grandes companhias – o filho de um ferreiro bêbado já é um homem de meia-idade, abastado, patriarca de uma bela família, e protegido de Thomas Wolsey, o arcebispo de York. Cromwell é um camaleão experiente, “à vontade na corte como no porto, no palácio do bispo ou numa estalagem. Ele sabe redigir um contrato, amestrar um falcão, desenhar um mapa, parar uma briga de rua, atrelar um cavalo e manipular um júri. Seu arquirrival é Sir Thomas More, santo e mártir em A Man for All Seasons, que em Wolf Hall Mantel retrata como um puritano piedoso que adora torturar a si próprio ou aos outros, como sua esposa ou os hereges. O Cromwell de Mantel, por outro lado, é o outrora formidável e adorável ícone de um capitalismo meritocrático em ascensão, o indivíduo que se fez por si, um maquiavélico ursinho de pelúcia. É um super-herói sem criptonita, ou pelo menos é o que parece um pouco. Dirigiu a dissolução dos mosteiros, desafiou o papado, coligiu as provas necessárias para decapitar Sir Thomas More, e adora realmente sua esposa e filhos. Em Wolf Hall, Mantel cria um retrato idealizado de Cromwell, no entanto extremamente convincente, mas lá pelo fim do romance ela começa a mexer neste retrato, a arranhá-lo, expondo-o às intempéries. Depois que Cromwell perdeu a esposa e duas filhas e se tornou o principal executor do reinado de terror de Henrique, seu espírito começa a vacilar, e então a endurecer. No livro, Cromwell comete vários pecados de realpolitik – devemos esperar danos colaterais numa guerra ao feudalismo e à superstição medieval. Mas na continuação, Bring Up the Bodies, que se estende por todo o ano seguinte à execução de More, não há como amenizar a principal tarefa de Cromwell, que consiste em fazer com que a esposa do rei seja assassinada a pedido deste, juntamente com quem mais ele achar conveniente eliminar. A esta altura, na história de Cromwell, o relato histórico começa a se comprimir – torna-se mais austero, mais próximo do destino – o que deixa Mantel com menos oportunidades de revisão e reinvenção. O ritmo do romance é o lento arrastar-se de uma inevitabilidade macabra. A podridão se infiltra e se espalha, e Cromwell ganha em ameaças o que perde em simpatia. A morte, e morte anunciada, está por toda a parte. A segunda parte da trilogia planejada por Mantel sobre Cromwell, Bring Up the Bodies, começa dois meses após a conclusão de Wolf Hall, em setembro de 1535, num clima de catástrofe: “Suas filhas caem do céu.” Cromwell batizou alguns falcões com os nomes de suas filhas, Anne e Grace, e da esposa Liz, todas mortas. Anne e Grace morreram de peste em Wolf Hall, assim como a mãe. Agora, os falcões representam os familiares mortos de Cromwell: “Caem, com suas asas douradas, cada qual com um olhar vermelho-sangue. Grace Cromwell paira no ar rarefeito. Silenciosa, captura sua presa, silenciosa pairando na direção do seu pulso. Mas os sons que ela faz então, o arrufar das penas e o chiado, o suspiro e o suave ondular das asas, o delicado cloc-cloc da sua garganta, são os sons do reconhecimento, íntimos, filiais, quase recriminadores. Seu peito está manchado de sangue e há carne em suas garras... Estas mulheres mortas, seus ossos há muito enterrados na lama de Londres, transmigraram. Imponderáveis, pairam nas correntes superiores do ar. Não têm compaixão de ninguém. Não respondem a ninguém. Sua existência é simples. Quando olham para baixo, veem apenas sua presa, e as plumas emprestadas dos caçadores: veem um universo trêmulo, que encolhe, um universo repleto de comida.” Na vida após a morte numa terra arrasada que Mantel evoca para elas, as doces meninas de Cromwell tornaram-se anjos da morte, com o poder de um impiedoso instinto animal. O mesmo destino, sugere Mantel, sucedeu a Cromwell, que está mais do que acostumado ao sofrimento em seu ofício e também em sua vida familiar. As pessoas são retratadas continuamente como animais em Bring Up the Bodies, que recende a abatedouro, mesmo nos seus momentos mais amenos. Incapaz de prender a atenção de Henrique na conversação, Cromwell observa que “o rei tem uma expressão que ele já viu antes, mais nas feras do que nos homens. Ele parece atônito, como um vitelo que o açougueiro golpeou na cabeça”. Henrique se cansou de Ana e do seu ventre inerte, e o leitor já vê a rainha condenada deslizar pelo corredor do curral para a correia transportadora: “Naquele dia, Ana vestia da cor da rosa e do cinzento das pombas. Cores que deveriam ter um fresco encanto virginal; no entanto, ele só conseguia pensar em entranhas, vísceras e tripas arrancadas, intestinos cinzento-rosados, enrolados, pertencentes a um corpo vivo; ele tinha alguns frades ainda para enviar a Tyburn (o local das execuções públicas), para ali serem esquartejados e estripados pelo algoz. Eram traidores e mereciam a morte, mas morte mais excessivamente cruel. As pérolas ao redor do pescoço dela pareciam pequenas contas de gordura, e, enquanto falava, ela as segurava e as puxava; ele fixava as pontas dos dedos da rainha, as unhas brilhantes como pequenas lâminas.” Como ocorre em muitas sequências, Bring Up the Bodies tem também recapitulações e exposições um tanto desinteressantes. (“Todo aquele tumulto para casar novamente, e no entanto, apesar de tudo, Henrique não tem um filho para suceder-lhe.”) Fatos que Mantel utilizou como prenúncio da morte em Wolf Hall explodem no horror no tempo presente. As amorosas visitas a Ana de Mark Smeaton, o tocador de alaúde, tornam-se uma prova contra ambos. As indecentes insinuações de Lady Rochford sobre o relacionamento entre seu marido, George Boleyn, e sua desavergonhada cunhada se tornam testemunhos que os condenam. O próprio título do primeiro romance é uma espécie de advertência – não mencionada até a última linha do livro, Wolf Hall é a propriedade da família de Jane Seymour, a futura terceira esposa do rei, por causa da qual Ana deve ser eliminada. No relato de Mantel, Cromwell se encarrega da eliminação, não sem um certo prazer. Uma parte considerável da segunda metade de Bring Up the Bodies é dedicada às suas conversas com testemunhas e pessoas influentes à medida que vai montando o processo contra a inconveniente esposa de Henrique. Como sabemos, Cromwell sabe extrair ouro falso de uma frase extemporânea – cada pergunta pode se tornar mais um passo coreografado na direção do xeque-mate. Mas em Wolf Hall, Mantel faz com que até a figura odiosa na qual ela transforma Thomas More possa pelo menos rivalizar em inteligência e conhecimento com Cromwell; por outro lado, em Bring Up the Bodies, o secretário do rei cuida dos seus infelizes suspeitos como um Columbo do século 16. Ele pensou “que aquilo seria difícil”, medita Cromwell quando Mark Smeaton sugere que Ana se apaixonou por ele. “Mas é como colher flores.” Cromwell está um pouco entediado, e o tédio se reflete no livro, que se torna repetitivo e meramente rotineiro. Ou talvez, mais apropriadamente, o falcoeiro está se tornando mais parecido com o cruel falcão: o tédio, assim como a piedade, nunca entra no contexto. Em Bring Up the Bodies, Cromwell começa a assemelhar-se mais ao rei que ele serve – apesar das falhas, o livro é um brilhante exemplo de que a arrogância pode se tornar contagiosa. Em um momento caótico de janeiro de 1536, Catarina de Aragão morre, Ana Bolena aborta o herdeiro do rei, Henrique cai do cavalo durante um torneio e é temporariamente dado como morto. Mas Cromwell decide o contrário, e usa sua visão e vontade para devolvê-lo à vida: “Ele olha para Henrique e acha que vê, mas pode ser sua imaginação, um leve movimento de uma pálpebra. É o bastante. De pé sobre Henrique, ele é como uma estátua sobre um túmulo: um enorme guardião, feio e mudo. Espera: então percebe novamente o tremor, acha que vê. Seu coração dá um salto. Bate com a mão espalmada sobre o peito do rei, como o mercador que conclui um negócio. E diz calmamente: ‘O rei está respirando.’ ... A mão pesada e espalmada sobre o peito real, ele tem a sensação de estar ressuscitando Lázaro. É como se sua palma, magnetizada, trouxesse de volta a vida do seu príncipe.” Quando alguém ressuscita um rei dos mortos adquire o poder de Deus e do Estado, até que Deus e o Estado decidam o contrário. No dia da ressurreição, Cromwell se encontra exatamente a quatro anos e meio de sua execução. A capacidade de condenar os vivos e de ressuscitar os mortos não garante que ele continue vivo. Como o falcão, Cromwell olha ao seu redor e vê apenas a sua presa; um dia, muito em breve – e indubitavelmente no capítulo final da trilogia de Mantel – ele verá a si mesmo olhando para trás. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLAJESSICA WINTER É EDITORA SENIOR DA TIME©Bookforum, Jun/Jul/Aug 2012, A Chronicle of Deaths Foretold, por Jessica Winter

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.