Inspiração do seu criador persiste, para o bem e para o mal

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Por Redação
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Análise: Luiz Zanin Oricchio

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O final de um megaevento sempre pede um balanço. Ainda mais quando se trata de evento especial, como foi a edição de número 36 da Mostra de Cinema em São Paulo. Especial, porque foi a primeira organizada sem a presença física de Leon Cakoff, seu criador e condottiere, morto no ano passado. Apesar de doente, Cakoff ainda imprimiu à mostra anterior a força de sua personalidade. Agora, foi sua colaboradora e viúva, Renata de Almeida, com sua equipe, quem a conduziu. Está em ótimas mãos.

Mas seria exato dizer que a Mostra 2012 se deu sem Cakoff? Ou seria melhor reconhecer que sua concepção de cinema e de organização de evento persistem, indiferentes à transitoriedade humana? Não estão presentes, espalhadas por diversos segmentos da Mostra, os gostos, as crenças pessoais, ousadias e defeitos de Cakoff? Claro que sim. Ou não foi ele quem introduziu esse ecumenismo cinéfilo que abre as telas de São Paulo a filmes de lugares improváveis como Armênia, Aruba e Afeganistão, apenas para ficar na letra "a"? Não foi ele também quem decretou a inexistência de "filmes ruins" na Mostra? Todos seriam bons. Pelo simples fato de ali estarem.

Enfim, são virtudes e idiossincrasias que desenham a alma da Mostra, sua essência. Estão na origem do seu inestimável valor, e igualmente na das suas limitações. Tal como seu criador, a Mostra não é perfeita. Mas tem personalidade forte.

Num cardápio de quase 400 títulos (em longa-metragem, já que os curtas foram abolidos), vimos presente esse grau vertiginoso de diversidade, expresso num panorama internacional bastante amplo. O mais interessante, a razão de ser da Mostra, são os filmes que, de outra forma, não teriam chance de exibição no País. É uma oportunidade de descoberta, que se abre ao aficionado.

Por outro lado, a Mostra foi inchada de pré-estreias. Filmes já comprados e que terão distribuição normal na cidade. Passam na Mostra e estreiam logo em seguida. Para que correr atrás deles, então? Apenas para vê-los antes dos outros?

Já nas retrospectivas, prevaleceu a ousadia. Ao lado do mainstream do cinema de arte, Andrei Tarkovski, vimos um autor japonês pouco badalado, Minoru Shibuya, com alguns filmes muito interessantes. O português Miguel Gomes trouxe um dos títulos mais estimulantes da Mostra, Tabu, e ainda ganhou retrospectiva precoce (é muito jovem). Ótima também a mostra do russo Sergei Loznitsa, de A Neblina. Aliás, o cinéfilo com paladar de gourmet poderia escolher uma ou duas retrospectivas, dedicar-se somente a elas e, com isso, fazer uma extraordinária viagem pelo mundo do cinema.

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A rivalidade com o Festival do Rio, e consequente exigência de ineditismo, privou os espectadores paulistanos de obras fundamentais, como o último Alain Resnais, Vou n'Avez Encore Rien Vu, e o vencedor do Festival de Veneza, Pietà, do coreano Kim Ki-duk, Algo a repensar. E, talvez, reservar o ineditismo apenas aos filmes em competição.

Na parte técnica, houve os já habituais problemas com a projeção digital, além de cancelamentos e alterações de horários que tumultuaram a vida de muita gente. O digital será ainda um desafio, até terminar a fase de transição do sistema analógico. Em especial no Brasil, atrasado na digitalização das salas. Por outro lado, a overdose de títulos induz mudanças bruscas de programação, cancelamentos e outros acidentes de percurso. Quem opta pelo gigantismo vive na corda bamba do acaso e o impõe aos outros.

E aí estaria o calcanhar de aquiles da Mostra: a tendência a agigantar-se e a incluir quase tudo em sua programação, sem o pente-fino de uma curadoria mais exigente. Dizer que não existem filmes ruins equivale a dizer que também não existem filmes bons, já que tudo se equivaleria. E, se é difícil e, no limite, impossível separar de maneira definitiva uns dos outros, também é verdade que todo festival do mundo trabalha com um sistema, ainda que imperfeito, de seleção. De eleição de uns e exclusão de outros.

Quem prestou atenção à chamada vox populi ouviu queixas sobre filmes de baixa qualidade, em especial entre os brasileiros. Uma seleção mais rigorosa poderia desagradar a alguns diretores. Mas seria feita em benefício dos espectadores e, em última análise, da própria Mostra.

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