Inimigo na própria casa

Fora da Lei põe em discussão o difícil tema dos ''mahgrébiens'' na França

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Sami Bouajila é um daqueles atores franceses com origem no Magrebe, região localizada no norte da África colonizada pela França. Abrange países como Marrocos, Argélia e Tunísia. Seus ancestrais vieram de lá. E ele é bastante conhecido - você o viu em muitos filmes, embora talvez tenha dificuldade para identificá-lo pelo nome. Sami Bouajila participou no começo da semana do Rendez-Vous du Cinéma Français, em Paris. Em princípio, deveria ter conversado com o repórter somente sobre seu novo filme, a comédia Des Vraies Mensonges, de Pierre Salvadori, em que forma um triângulo insólito com Nathalie Baye e Audrey Tautou, como mãe e filha. Mas Bouajila conversou, e muito, sobre Fora da Lei, de Rachid Bouchareb. Na segunda, quando houve a entrevista, a expectativa é de que Des Hommes et des Dieux, de Xavier Beauvois, fosse selecionado para representar a França no Oscar. Na quarta, foram anunciados os nove pré-selecionados. O filme de Beauvois ficou de fora (como o brasileiro Lula, o Filho do Brasil, de Fábio Barreto) e Fora da Lei foi selecionado, representando a Argélia. Os franceses devem ter detestado. Leia para saber por quê.Desde que foi selecionado para Cannes, em maio passado, Fora da Lei provocou polêmica na França. O que você diria para o espectador brasileiro, que não domina bem o quadro histórico dessa discussão?Que a França tem muita dificuldade para lidar com seu passado. Não estou falando de Versalhes nem da Revolução Francesa, mas do passado colonial e do colaboracionismo com os nazistas, durante a 2ª Guerra. Um dos filmes anteriores de Rachid, Indigènes ("Dias de Glória", no Brasil), também já havia provocado discussão ao abordar o sacrifício dos "mahgrébiens". Embora considerados cidadãos de segunda categoria, deram a vida para liberar a França dos nazistas. Aquele era um resgate histórico um pouco mais fácil. Podiam nos acusar de revanchismo, de cobrar uma antiga dívida, mas ela, a dívida, é real e indiscutível. O caso de Fora da Lei é mais complicado porque o filme é centrado no processo de independência da Argélia, uma guerra colonial que custou muitas vidas. O inimigo não é mais o estrangeiro e sim o outro dentro da própria casa. Pela direita, a França não teria recuado de seu projeto colonial, imperial.No fim de semana Marine Le Pen foi entronizada como dirigente máxima da Frente Nacional, inimiga do filme de Bouchareb.É uma história que vem de longe, desde que (Jean-Luc) Godard fez O Pequeno Soldado. Entendo que possa ser traumático, principalmente para quem perdeu naquela guerra, seja bens materiais ou familiares, mas o processo de independência era natural e inevitável. O filme de Rachid trata disso.É a história de uma família dividida. Seu personagem adere ao movimento de libertação argelina. Ele é real?Rachib lhe diria com muito mais propriedade que, sim, ele se baseou não em uma, mas em diversas personagens reais da época. Pegou características de uma, ações de outra e misturou tudo com a liberdade que a ficção permite aos autores.E você, como o interpretou?Com a mesma liberdade com que ele o criou. Não liguei Abdelkader a nenhuma figura conhecida, da época nem de hoje. Mas bastou me voltar para o passado de minha família para encontrar, em casa, as referências. Todo "mahgrébien" sabe, nem que seja intuitivamente, como foram aqueles anos. Os relatos familiares são muito fortes, as lembranças também.Bouchareb reúne de novo o trio de Dias de Glória, Jamil Debbouze, Roschdy Zem e você. De onde você conhece o diretor?Rachid? Tenho a impressão de que desde sempre. Era muito jovem, há mais de 20 anos, e ainda estudava para ser ator quando fiz meu primeiro teste com ele. Ficamos amigos. Jamil e Roschdy vieram junto. Compartilhamos ideias estéticas e políticas, nossas famílias se frequentam.E como é Bouchareb como diretor?Muito sério e focado. Ele não conseguiria fazer esses filmes grandes, se não fosse assim. Dias de Glória e Fora da Lei abordam períodos históricos bem definidos. O segundo começa onde o primeiro termina. Ambos possuem verossimilhança histórica, cenas de multidão, de combates. Tudo isso exige preparação, concentração. Rachid tem essas qualidades e possui outra - incita à cumplicidade. Faz com que toda a equipe carregue o filme como se fosse seu.O que representa ser "mahgrébien" na França, hoje?A questão é difícil. Somos franceses, eu sou francês. Sou um ator, conhecido. Contraceno com figuras míticas da cultura francesa e nós somos muito orgulhosos de nosso cinema, de nossos atores. No meu caso, não sinto a discriminação, mas já senti. Para o jovem que vive na periferia, que tenta fazer seu caminho, a vida ainda é difícil. Há um movimento da direita que tenta nos fazer responsáveis pelas dificuldades econômicas e políticas da França. Não é verdade e filmes como os de Rachid nos ajudam a entender o mundo. Tenho muito orgulho do que estamos fazendo.

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