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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Indagações

Fiz 80 anos. Entrei na evitada e almejada “melhor idade” ou, como se dizia quando éramos politicamente incorretos, na “velhice”. Minha mente (que não tem idade) só acende bem-aventuranças. Meu calendário fica menor, mas há o alívio de não ter que fazer prova de matemática! Agora, todo ano se repete e não perco mais nenhuma aula, porque fui expulso da escola. Depois de uma certa idade, somos nós mesmos que nos avaliamos. Agora, eu não vou mais ser; eu sou!

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Atualização:

Um mago consultado diz que, aos 80, a alma fala com a consciência, os neurônios com o cérebro. Desta plataforma, eles mandam bilhetinhos para a mente, que telegrafa ao espírito.

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É normal!, diz-me o bruxo fumando um baseado. Coriscos e relâmpagos intrusivos cruzam-se num permanente, mas nem sempre explícito, diálogo do “eu” consigo mesmo, pois o “eu” não está só. Ele é assolado de fora e de dentro por afrontas, notícias e algum terrorismo – além de velhos desejos e fantasias. Esse fluxo incessante faz um carnaval. A realidade tem muitas fantasias.

Foi assim que acumulei, ao longo da semana, estranhamentos e indagações um tanto incompatíveis com a idade calhada a sabedora e a bíblica quietude – aquele conformismo próprio dos velhinhos bondosos e puros. O que não é, definitivamente, o meu caso.

Mas não tem sido sempre assim, quando eu esperava a “barca” a ligar Niterói com o mundo? Na enorme fila, eu já não sentia a ansiedade do que chamamos de vida consciente, ali aguçada pela perspectiva da jornada no balanço do mar? Não era essa travessia o modelo das escolhas profissionais que a casa e a sociedade me obrigavam a fazer, quando casualmente perguntavam: o que você vai ser – ou seja: o que será de você?

– Por que não és um ricaço? Os ricos não esperam! – ainda diz um sujeito inconformado dentro da minha cabeça. Mal pacifico essa impertinência, ouço uma outra indagação trivializada nestes tempos de roubos do Brasil pelo Brasil: por que não fostes um político cunhado na frieza, na ambição, no conhecimento dos regulamentos que ninguém lê e na desonestidade? Além de milionário, tal senda faria de ti um poderoso protagonista no labirinto do teatro nacional.

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Será que eu não teria ido mais longe ou “me arrumado”, se tivesse escolhido um outro caminho? Em vez de livros; dinheiro? Em vez de individualidade; uma turma e um cartão partidário? Quem sabe a marquetagem teria resolvido minha inveja, meu narcisismo e – eis a questão – a minha vergonhosa conta bancária?

Mas qual...

Infelizmente, escolhi não uma “ciência exata”, daquelas que explicam o mundo, mas uma disciplina meio histórica e literária, que desiste dos números, tem como centro a comparação por contraste e, por isso, recusa o trivial. Diferentemente das outras “ciências sociais”, a antropologia que pratico revela muitos modos de vida. Todos equivalentes e todos com o potencial de serem dignos e indignos, honrados ou execrados. Além desse deslocamento da contemporaneidade, que confundimos com “avanço” e modernidade, seu método é um oximoro: a chamada “observação participante”.

Porque o observar e analisar, usando a própria consciência como instrumento, impede o participar. E o participar, com seus afetos, gozos e nojos, impede o observar. Pode-se atacar uma feijoada ou o amor, tomando notas? Não é impossível, mas não é para qualquer um.

O “observar/participando” não é inútil, mas é uma contradição em termos tipo “inteligência militar”, “político honesto”, “profundidade jornalística” ou “radicalismo equilibrado”.

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Guardando as devidas proporções, é como compreender por que o Brasil foi roubado por seus mais amados governantes. Pois como decifrar o populismo lulo-petista sem passar pelo triste capítulo do acordo com os ricos para roubar os pobres, que o elegeram e dos quais foi esperança? Eis o grande programa ideológico do genial Bertolt Brecht virado pelo avesso. Eis o mistério pateticamente trazido à luz por uma Other-Brecht, a qual transformou a ópera dos vinténs num infame jogo de bilhões.

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Mas voltando ao microbalanço dessa caminhada de 80 vezes 365, devo dizer que eu não trocaria esses dias de espinhos, rosas e algum uísque, angústia e muito amor e música de Sinatra – por coisa alguma. Podemos sair de um papel, conforme temos visto envergonhados nos jornais, quando descobrimos figuras públicas como ladrões. Mas – como ensinava Shakespeare – só saímos de nossas vidas quando deixamos o palco.

Por outro lado, sabemos que o morto é uma entidade sem papéis. Na morte, viramos tudo o que os outros querem e, depois disso, somos esquecidos.

Mas, do ponto de vista da terra do nada, tudo o que vivemos é mágico e maravilhoso. Mesmo o dia mais infeliz é uma realização, mesmo o abandono e a solidão mais punitiva, é parte da magia da saudade. Essa palavra que esses 80 me presenteiam, pois, como aprendi com Joaquim Nabuco, ela – a saudade – está nos túmulos e nas cartas de amor.

Opinião por Roberto DaMatta
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