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Luzes da cidade

Incêndios e incendiários

É impossível pensar na polarização política hoje, seja no Brasil, nos Estados Unidos ou na Europa, sem examinar o novo populismo do governo como o maior inimigo

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Neste domingo chamuscado pela tragédia incomensurável do incêndio florestal em Portugal, vemos reações semelhantes às que assistimos em Londres, após o incêndio da torre de North Kensington, na quarta-feira. São duas tragédias diferentes, a de Londres anunciada por negligência criminosa, a de Portugal, pelo que se conhece, uma tempestade perfeita de fatores naturais possivelmente agravada por negligência administrativa. Mas, apesar das diferenças, os dois incêndios têm em comum o choque e a procura imediata por culpados no governo.

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É impossível pensar na polarização política hoje, seja no Brasil, nos Estados Unidos ou na Europa, sem examinar o novo populismo do governo como o maior inimigo. A ideia de que o sindicato do crime que se instalou em Brasília seria dissolvido por simples ideologia privatista desafia não só o bom senso, como a história. A privatização de uma atividade é justificada pelo argumento de que o interesse no lucro atrai eficiência. Se um serviço público se mostra impermeável à melhoria por obtenção de lucro, soluções tamanho único se revelam retrocessos.

Mantras como “estado mínimo” são tentativas de passar mínima camada de asfalto sobre terrenos como o que produziu a vitória de Donald Trump. Uma campanha de xingamentos contra tudo o que o governo pode fazer em saúde, educação, meio ambiente e prevenção de excessos do mercado financeiro encontrou apoio entre eleitores que são vulneráveis ao abandono pelo governo e precisam de benefícios que seus representantes agora querem suprimir.

O súbito ataque de virtude que acometeu Joesley Batista vem com a sugestão de que seria impossível perseverar na iniciativa privada brasileira sem comprar políticos e abrir contas para os meliantes na Suíça. Se aceitarmos a premissa, temos que acreditar que o estado mínimo implicaria em máximo Joesley. Ele virou bilionário graças ao contribuinte brasileiro e, em seguida, tentou mudar a sede da empresa que vocês, leitores, fizeram crescer, para o Caribe fiscal da Irlanda. Se a alternativa é entre Eduardo Cunha e Joesley Batista, estamos fritos. Um usou a política pública como banco privado, outro usou o banco público como banco privado.

Tanto na eleição americana, como no incêndio de Londres, o elefante na sala é a desigualdade. Um velho amigo que tem apartamento na região administrativa onde ocorreu o incêndio da torre Grenfell e inclui não só prédios para moradores de renda baixa, como a abastada vizinhança de South Kensington, me contou ter frequentado, há anos, reuniões do conselho local. Ele ficou enojado com o desprezo dos políticos conservadores pelos eleitores de North Kensington. A conta chegou: pela primeira vez, os conservadores acabam de perder o controle da área para os trabalhistas de Jeremy Corbyn. Corbyn foi à TV domingo defender a expropriação de mansões desocupadas de South Kensington, muitas compradas por oligarcas russos lavando dinheiro. A noção de expropriação discutida com naturalidade por um potencial primeiro ministro britânico, em 2017, dá uma medida do extremismo que a segregação da desigualdade inspira. Uma mesma região administrativa municipal abriga duas galáxias sociais. 

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A praça pública, a ágora, onde os antigos atenienses se encontravam e discutiam seus problemas, deu lugar a praças públicas diferentes e a populações que nunca convergem. Em Kensington, como em Brasília, políticos se elegem com pequenas maiorias e passam a representar ínfimas minorias de doadores.

Nos Estados Unidos, temos um presidente que só se dirige aos 35% dos americanos que votaram nele. São eleitores que se sentem traídos por governos sucessivos e optaram por outro incêndio, o de Roma/Washington. Londres nos lembrou que este tipo de incêndio niilista leva a incêndios com vítimas carbonizadas.

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