01 de fevereiro de 2015 | 02h06
- Você conhece alguém que guarda o pinto no lado direito?
***
Desconsolada, minha amiga fala da agonia que tem sido, não só para ela, catar na população masculina um espécime com o qual possa chegar, já nem diz a um casamento, mas a um namoro capaz de atravessar duas ou três estações do ano. Homem, generaliza ela, só quer saber de "ficar".
Para lhe trazer um grão de alegria, tento, sem êxito, fazer graçola - e digo que a famosa frase de Pedro I, "diga ao povo que fico!", talvez tenha sido endereçada não à nação brasileira, como se lê nos livros de História, mas à dama com quem ele bandeirosamente "ficava" - Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos.
Minha amiga sorri por mera polidez, antes de retomar o ar abatido e sentenciar:
- O problema dos ficantes é que eles não ficam...
***
Coisa ruim dificilmente vem sozinha, e chegou o dia em que lhe deram a má notícia: o ex-marido com outra.
Convocada em regime de urgência, a melhor amiga deixou que ela percorresse todos os meandros da dor de cotovelo, da fúria em carne viva às lágrimas da autocomiseração, e só então pingou uma gota de bom senso:
- Não foi você mesma que largou dele?
O bastante para vir de lá um rugido de indignação:
- Mas não admito que mexam nos meus arquivos!
***
Há coisas a que só com a idade você passa a ter direito. Não me refiro, aqui, ao cartão geriátrico (reparou na figura do velhinho patético que se apoia na bengala?) para viajar de graça no ônibus ou metrô, e muito menos ao repulsivo rótulo "melhor idade", invenção, por certo, de quem nunca esteve lá. Falo de conquistas de outra ordem. Esta aqui, por exemplo: às vésperas de completar 60 anos, a escritora Hilda Hilst me disse que não via a hora de atingir o patamar dos 70, o que finalmente lhe daria direito de "usar um xale, ter uma corcunda".
Não chego a tanto, mas acredito que a prolongada permanência neste mundo (estou prestes a entrar na idade do xale e da corcunda) já me autoriza umas tantas implicâncias.
Assim sendo, faço saber à praça que acabo de incorporar à minha coleção de abominações, na mesma prateleira do "beijo no coração" (ou em qualquer outra víscera) e do coraçãozinho armado no ar com as duas mãos, este horror que alguns desferem no momento das apresentações:
- Prazerão!
***
Ali pelos 20 anos, fiquei preocupado quando soube que tinha um desafeto na praça de Belo Horizonte. O primeiro, achava eu. Que fazer? Mais uma vez recorri a um querido e experiente amigo, o contista Murilo Rubião, que me levara para trabalhar com ele no Suplemento Literário. Além de padrinho nas letras, Murilo acabou acumulando funções de confidente e orientador para as questões deste mundo. Foi ele que, entre outras artes, me ensinou a tratar com gente doida, o que ainda hoje me tem sido de valia.
O desafeto em questão não era doido - antes fosse -, mas um pretensioso colunista, inimigo da gramática e da ortografia, cuja precariedade de caráter era do conhecimento municipal, quiçá estadual. Dito o nome, Murilo abriu um sorriso:
- Ah, esse não serve. Arranja inimigo melhor.
***
Se você me leu na semana passada, talvez se lembre da previsão que fiz: com os reservatórios do Sudeste cada vez mais secos, aponta no horizonte o dia em que Jesus voltará para fazer vinho virar água. No restaurante, uma versão hidrológica do sommelier vai nos recomendar um "turvo" de boa safra, o Sabesp 2015.
Faltou dizer, lembra o leitor Maurício, que esse néctar será degustado à luz de velas - não por romantismo, mas porque além de água já não haverá energia elétrica.
Encontrou algum erro? Entre em contato
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.