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Imortal sem fardão

Drummond tinha um arsenal de desculpas para não entrar para a Academia de Letras

Por Humberto Werneck
Atualização:

Nas andanças em busca de munição para escrever uma biografia de Carlos Drummond de Andrade, aqui e ali encontro gente que se espanta com o fato de que nosso maior poeta tenha atravessado a vida sem ceder a tantos convites para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. 

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Amigos que a ela pertenciam, como Antonio Houaiss, chegaram a bolar esquemas em que Drummond não precisaria curvar-se à etiqueta da Casa de Machado de Assis, que exige do candidato uma visita protocolar a cada um dos acadêmicos. No seu caso, não seria necessário peregrinar de porta em porta, numa passada de chapéu para amealhar votos, pois para ele, excepcionalmente, se armara uma eleição certa e consagradora. 

Em sua recusa ao fardão, Drummond não precisava invocar os exemplos de confrades graúdos que também optaram por passar ao largo do Petit Trianon – o velho prédio, na avenida Presidente Wilson, remanescente da exposição dos 100 anos da Independência, em 1922, em seguida presenteado pela França aos brasileiros. Autores conhecidos e reconhecidos como Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Erico Verissimo, Nelson Rodrigues, Murilo Mendes, Aníbal Machado, Vinicius de Moraes, Antonio Candido, Rubem Braga, Fernando Sabino ou Pedro Nava. 

Nava, aliás, a quem aos 80 anos se propôs eleição nos moldes da que fora oferecida a Drummond, tirou fora o corpanzil com um argumento irretorquível: “Na minha idade, o sujeito já é uma vaga...”. 

Mais um parêntese. Outro grande poeta, João Cabral de Melo Neto, teria entrado na ABL, em 1969, menos por vontade de tomar chá às quintas-feiras do que para se pôr a salvo de perseguições políticas. Faz sentido. No breu da ditadura militar, com o AI-5 ainda fresco, Cabral achou prudente não se expor a dissabores como os que enfrentara na década de 1950, quando, acusado de comunista, teve de gramar dois anos fora do Itamaraty. Quem me contou foi seu amigo Otto Lara Resende, também ele acadêmico, criatura tão bem informada que dava a impressão de ser onisciente. Nenhum governo, fosse ditatorial ou democrático, jamais importunou um “imortal”, lembrou ele, e pingou uma síntese digna do melhor Otto: “A farda protege o fardão”. 

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Sempre que precisou recusar apelos para vestir o fardão (operação que, brincou alguém, seria ainda mais árdua do que conquistar uma das 40 cadeiras da ABL, tão rígido é o tecido daquela vestimenta), Drummond justificou-se com o temperamento reservado de quem pouco frequentava o mundo das letras, e para quem o convívio, não só literário, deveria pautar-se por “uma não muito estouvada confraternização”. 

Raras vezes se submeteu ao massacre das sessões de autógrafos, nas quais um dos riscos, para o escritor, costuma ser a ocorrência de um “branco” sob o olhar pedinte de quem veio colher autógrafo. Todo mundo se sente mais ou menos inesquecível, e na fila das dedicatórias os mais abomináveis são aqueles capazes de lascar a pergunta que em nenhuma circunstância se deve fazer: “Não está se lembrando de mim?”. “Dá vontade de responder ao carrasco”, desabafou para mim uma vítima: “Olha aqui, eu vou à merda – desde que você não me acompanhe!”. 

Numa das ocasiões em que pagou tal mico, Drummond, quem sabe para descarregar excesso de agonia, liberou o insuspeitado moleque que havia nele, e escreveu algo assim: “Para fulano de tal, oferece o Manuel Bandeira”. A seu lado, na bancada de autógrafos, estava o próprio Bandeira. 

Quando, em 1941, o ditador Getúlio Vargas foi eleito para a ABL, o poeta viu cair do céu um argumento adicional para resistir às glórias acadêmicas – e, com o amigo Sérgio Buarque de Holanda, firmou compromisso de jamais candidatar-se. (Quando, décadas depois, quiseram fazer dele um “imortal”, Chico Buarque safou-se com a alegação de que não poderia um filho de Sérgio Buarque contrariar a decisão paterna.)

Mais de uma vez, Drummond desempoeirou bem-humorado pretexto, o da monogamia acadêmica, para esquivar-se dos que desejavam vê-lo incrustado numa das cadeiras de veludo verde do Petit Trianon. “Pertenci à Academia de Itabira, e sou fiel à sua memória”, explicava, muito sério. Referia-se ao fato de que em 1915 o Grêmio Dramático e Literário Artur Azevedo, de sua cidade natal, abriu exceção para acolher entre calvos & barbaças um pivete de 13 anos. No segundo andar de um sobrado (em cujo térreo, vá o detalhe pitoresco, trabalhavam dois sapateiros mudos), Carlito gaguejou um discursinho, para orgulho do coronel Carlos de Paula Andrade, que para prestigiar o filhote viera a galope de uma de suas fazendas.

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Era também com bom humor que o poeta, pela vida afora, de quando em quando espicaçava os usos e costumes da ABL, atirando-lhe divertidas farpas. O que nunca o impediu de frequentar a casa em solenidades especiais, e sobretudo de manter relações fraternais com amigos que a ela pertenciam, como Manuel Bandeira, Afonso Arinos de Melo Franco, Cyro dos Anjos e Antonio Houaiss. 

Com estes e outros mais, Carlos Drummond de Andrade, curiosamente, veio a compor, de 1964 até a morte, em 1987, o que se pode considerar uma informal academia de letras – o Sabadoyle, assunto de mais conversa na semana que vem. 

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