Igualdade como privilégio

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Fiz de tudo para não prestar atenção porque estou numa fase de contenção de gastos. Ela consiste em evitar desperdiçar tempo e energia prestando atenção em trivialidades. Peguei a revista na caixa de correio, li a manchete da capa e joguei logo na pilha de leituras que nunca vai ser conquistada. Troquei de canal quando a autora do artigo foi entrevistada na CNN. Mas a voz da mulher reapareceu no meu fone quando estava ouvindo rádio pelo celular. Cedo à mais nova tempestade no copo d'água da mídia viral. Aproveitando o neologismo da contaminação, quando é que teremos epidemiologistas para enfrentar estas gripes espanholas de debates com a força gravitacional de cenas do Seinfeld?Então, vamos lá: mais uma vez, as mulheres americanas estão discutindo por que não podemos "have it all". Por que, perguntam, não temos garantia de que podemos ganhar um Prêmio Nobel de Física sem perder a encenação de Branca de Neve e os Sete Verticalmente Prejudicados na escola dos nossos filhos?A expressão have it all, ter tudo, para começo de conversa, é a quintessência do otimismo desta cultura, na linhagem de "sonho americano". Nós, ibéricos derrotistas, não perdemos tempo com semântica ensolarada. Como dizia o saudoso Millôr, "é melhor ser pessimista do que otimista. O pessimista fica feliz quando acerta e quando erra". A polemista em questão é Anne Marie Slaughter, ex-diretora de planejamento político do Departamento de Estado de Hillary Clinton, diga-se de passagem, uma das mais visíveis e eficientes ocupantes do cargo na história americana. E, vamos ser justos, depois de 2 anos, Slaughter fugiu do Departamento de Estado de volta para sua cadeira na Universidade de Princeton, não para pilotar um fogão. Ela estava angustiada com o bem-estar de seus dois filhos, um deles, adolescente em crise, e tinha o privilégio da escolha.Surpresa pela reação colérica provocada por seu artigo que diz, é hora de parar de nos enganar com a falácia de que podemos "have it all", a estimada Anne Maria Slaughter admitiu, afinal, que parte do problema é a expectativa contida na expressão, não a falta de creches em Washington.O fato é que os homens também não podem ter tudo no hostil mercado de trabalho da economia americana. Uma pesquisa recente mostrou que pais que compartilham mais de tarefas domésticas são geralmente mais satisfeitos com a vida. E não é porque eles adoram dobrar as roupas que saem da secadora, a não ser, é claro, os masoquistas. É porque têm um investimento maior na vida pessoal, a vida que compartilham com parceiras, parceiros e crianças. Um fator que agrava o dilema carreira X maternidade é a tendência de adiar a maternidade. Se uma mulher bem-sucedida, com 25 anos de profissão, tem um filho de 5 anos, ela vai enfrentar o desafio: sua senioridade profissional vai se chocar com sua expectativa de estar presente na vida da criança. Não adianta culpar a conspiração do capitalismo desalmado contra a mulher no mercado de trabalho. Quando eu tinha 24 anos e uma filha de 1 ano, faltar ao trabalho por causa da coqueluche tinha menos consequências para mim e para meus colegas porque o lugar que eu ocupava, como profissional, tinha menos relevância. Na década de 80, apareceu um emprego no exterior, quando a guerra Irã-Iraque e outras coberturas internacionais me manteriam longe de casa com frequência. Abri mão do posto sem, por um momento, fazer discurso sobre a desvantagem das oportunidades profissionais para mulheres. Tive o privilégio de recusar um trabalho para proteger o que era mais importante para mim. Como punir uma criança de 2 anos sob a desculpa de reafirmar minha emancipação? A escolha foi minha e outras mulheres hão de fazer escolhas diferentes. Mas também terão que viver com elas. Há muito o que conquistar - horários flexíveis, um sistema de apoio corporativo e a transformação cultural que passa por personagens modelo como a mulher que chega à presidência. Mas se há falácia que deve ser interrompida é a ideia elitista de que, quando atingimos um certo patamar profissional, merecemos o privilégio não concedido a mulheres trabalhadoras em toda sua vida produtiva. Se Dilma Rousseff decidir que uma dor de barriga do neto Gabriel justifica cancelar a reunião com Angela Merkel, alguém vai defender a nossa presidente como feminista?

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