Ian McEwan reflete sobre o ato de escrever no romance "Reparação"

Protagonista é enfermeira da 2.ª Guerra que se torna escritora na maturidade; autor vê no ofício que compartilha com ela a possibilidade de "explorar outras mentes"

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Por Agencia Estado
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Ian McEwan começa seu Reparação citando uma obra de Jane Austen, Northanger Abbey (A Abadia de Northanger). A primeira frase da epígrafe é a seguinte: "Cara senhorita Morland, pense o quanto são horrorosas as suspeitas que tem nutrido." É justamente esse o tema do mais recente livro de McEwan: a eterna suspeição de quem pretende moldar o mundo à sua ótica. Briony, a protagonista do romance de McEwan, tem 13 anos em 1935, quando já se esperava a eclosão da 2.ª Guerra. Pretende-se escritora, e decide montar uma peça de sua autoria, "Arabella em Apuros". Para isso, conta com o apoio dos primos que estão para chegar. Na verdade, toda a família está para se reunir: a mãe doente, a irmã Cecília, recém-saída da universidade, seu irmão Leon e de um amigo, e, especialmente, o filho da faxineira, Robbie, um paisagista que está para iniciar um curso de medicina. Cecilia - ou Cee - mantém uma tensa (e sensual) relação com Robbie. Numa cena à beira de um poço, ela acaba tirando a roupa para mergulhar e pegar um caco de peça de porcelana, que Robbie quebrara. Briony vê a cena, mas não totalmente - e começa a completá-la com sua imaginação. O que se passa daí em diante acaba sendo incorporado à narrativa, à tentativa de reparar ou restaurar algo que se quebrou - numa vã tentativa de dar sentido àquele episódio. Desiste de montar a peça, e, na mesma noite, um crime acontece. Durante a guerra, Briony torna-se enfermeira, e, posteriormente, escritora. No fim da vida, tem ainda um grande livro para completar. Em entrevista, McEwan, que recentemente escreveu um artigo sobre sua infância e adolescência, falou do seu livro e de sua relação com a protagonista. Também disse que gostaria de vir ao Brasil "num dia destes". Como a editora britânica Liz Calder planeja organizar um festival literário em Paraty no ano que vem, completou que talvez essa seja uma ótima oportunidade. Leia abaixo os principais trechos da conversa. Agência Estado - Briony é uma garota de 13 anos possuída "pelo desejo de que o mundo seja exatamente" como ela quer. Para o sr., os escritores se parecem com crianças assim? Ian McEwan - Num certo sentido. Parte do trabalho de um romancista é tentar criar um mundo. Mas, claro, mesmo a imaginação é difícil de controlar. Sim, nós tentamos criar uma espécie de universo paralelo. Algumas vezes, queremos impor a desordem, claro, mas certamente o que acontece com Briony é que ela tem uma imaginação produtiva e, ao mesmo tempo, uma grande necessidade de ordem. Dois desejos que podem ser um desastre, como mostra a história do século 20. Quando os homens desejaram ordem demais, surgiram os mais tirânicos Estados. Temos, portanto, de achar um meio-termo. Seu livro é uma tentativa disso? É difícil dizer. Não é um livro moralista, tento contar uma história, para que a história fale por si. Precisamos da imaginação, não podemos tocar nossa vida sem a imaginação, não podemos nem mesmo viver uma vida vagabunda sem a criação artística. Ao mesmo tempo, pode ser catastrófico e destrutivo nos submetermos totalmente à nossa imaginação. Algumas vezes, precisamos ter uma percepção poderosa do real, e é o que mostra o caso de Briony. Não é a primeira vez que o sr. utiliza a 2.ª Guerra como cenário para uma obra. Por quê? Nasci em 1948, cresci sobre os escombros dessa guerra, que afetou profundamente as atitudes da geração dos meus pais. Além disso, ela influiu decisivamente no arranjo geopolítico do mundo, na guerra fria, na corrida armamentista, na origem da União Européia, etc. É um evento central, não houve nenhuma outra guerra na história da humanidade em que tantas vidas foram perdidas. Inevitavelmente para alguém da minha geração, a 2.ª Guerra continuará sendo um dos grandes mistérios do nosso tempo - como ela pôde ocorrer numa das áreas mais civilizadas do planeta, sua violência extraordinária, sua brutalidade, suas maldades. Acho que ainda somos atormentados por essas questões. Há alguns meses, o sr. escreveu um artigo chamado "Mother Tongue" (A Língua Materna). É possível identificar nele alguma relação entre sua história como escritor e a de Briony? Claro que há. Quando você se torna um escritor, seu herói, ou heroína, tem de receber, mesmo que você não queira, muito de sua história pessoal. Há muito de mim em Briony, algumas de suas idéias sobre escrever como algo que permite transferir culpa, por exemplo, de acreditar que a ficção é um modo de explorar outras mentes. Na epígrafe de "Reparação", o sr. cita um trecho de um livro de Jane Austen. O sr. vê alguma relação entre sua obra e a dela? Adoraria que isso fosse verdade, porque ela é uma grande autora. Acho que Northanger Abbey (A Abadia de Northanger) e Reparação têm alguma relação, e talvez alguns outros livros meus. A heroína do livro de Jane é uma jovem leitora de clássicos, clássicos que a fazem compreender o mundo de um modo incorreto, algo que se parece com o que ocorre com Briony. Mais genericamente, Reparação se passa numa casa de campo, algo que faz parte de uma tradição. O sr. foi um dos primeiros a escrever artigos sobre o 11 de Setembro. Quando um autor de ficção deve, na sua opinião, se manifestar sobre fatos reais e recentes como esses? Um escritor deve falar sobre o que quiser, quando quiser. Não defendo que haja qualquer tipo de receita em casos assim. Também não acho que os escritores têm, obrigatoriamente, de se posicionar sobre o 11 de Setembro. Para alguns, o silêncio é uma boa resposta. No meu caso, minha mulher, que é jornalista, me ligou perguntando se eu gostaria de escrever algo, e eu respondi que sim. O editor me deu uma hora, porque os eventos ainda estavam ocorrendo. Havia um grande branco em minha cabeça, eu estava vendo as notícias na TV por duas horas. Mas muitos de meus amigos decidiram não escrever nada, e eu os compreendo. Agora, como iremos acomodar esses eventos em nossa ficção, não posso dizer. Acho que temos de esperar, talvez esperar por anos, até que possamos encontrar um equivalente emocional para o que se passou. Falamos sobre a 2.ª Guerra e o sr. citou como uma de suas conseqüências a União Européia. O que o sr. pensa dela? Acho que nos esquecemos rapidamente que a Europa foi dividida por guerra por séculos, mas hoje em dia isso é quase inimaginável. Na origem da idéia da União Européia, há um sentimento de que franceses e alemães têm de estar tão unidos quanto possível, para evitar qualquer outra guerra. Nesse sentido, tivemos uma paz relativa e quase sem precedentes na Europa, o que é positivo. Ao mesmo tempo, a União Européia é grande demais, não muito democrática, permeável à corrupção e em alguns casos sua política resultou em desastres ecológicos. Muitos aspectos me incomodam, mas eu concordo com seus fundamentos. O sr. acredita que sua obra tenha algo de especial ou específico em relação à de seus contemporâneos britânicos? Tento fazer em cada um dos meus livros algo novo, que ainda não fiz anteriormente. Tento, em outras palavras, ser original. Acho que qualquer crítico pode encontrar pontos em comum com outros autores, mas também outros diferentes. O que posso dizer é que não me sinto parte de um movimento ou escola. Qual a grande diferença no processo de criação entre "Reparação" e um livro como "Amsterdã"? Escrever Amsterdã foi muito mais fácil. É, essencialmente, uma novela cômica, improvável, seguindo um estilo satírico. É como se fosse feito num feriado. Escrever Reparação foi uma experiência mais complexa e intensa. É um livro muito mais ambicioso, passei três anos fazendo-o. Briony passou a vida toda escrevendo uma obra. O sr. tem um livro assim? Não, não tenho. Gostaria muito de ter, acho que seria bem interessante.

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