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Ian McEwan e seus truques de estilo

O novo romance do autor, 'Serena', publicado aqui antes da Inglaterra, evoca Orwell, parodia Fowles e vira um pastiche

Por ANTONIO GONÇALVES FILHO - O Estado de S.Paulo
Atualização:

A autonomia da ficção, que para outros autores é relativa, para o britânico Ian McEwan é absoluta. Nela caberia tudo: mistura de gêneros, metalinguagem, farsa, imitação de estilos, referências paródicas (a prêmios literários que recebeu, como o Booker) e, especialmente, um narrador cuja voz tomou emprestada da personagem que criou. Sim, a principal novidade de Ian McEwan em Serena, que é lançado no Brasil antes da Inglaterra, não é dizer, a exemplo de Flaubert, que “Emma Bovary c’est moi”, mas se colocar artificialmente no lugar de uma mulher - inclusive na cama - para desvendar seu mistério. O esforço, evidentemente, é inútil. Como concluiu Cronenberg em seu filme M. Buttlerfly, seria impossível existir um monsieur Butterfly, pois nenhum homem na face do planeta estaria disposto a abdicar de sua condição para conhecer a mente de uma mulher. Como só podemos amar aquilo que conhecemos, a conclusão de Cronenberg é desanimadora: há um fosso entre os mundos masculino e feminino. Nenhuma ficção, por melhor que seja, vai melhorar esse estado de coisas. Mesmo assim, Ian McEwan insiste. Bom escritor, ele quis fazer de Serena um livro perturbador como Reparação, com o qual, aliás, guarda semelhanças, embora seja bastante inferior ao precedente. No antigo, o papel de escritor é mais importante. No recente, o leitor importa mais. Em Reparação, a imaginação de uma escritora precoce acaba levando à prisão o inocente filho de um caseiro, amante de sua irmã. Briony, a autora ciumenta, morre sem poder reparar o dano que causou. Em Serena, a voraz leitora que dá título ao romance enfrenta drama similar: recrutada como agente de espionagem, ela usa um escritor para produzir um livro que servirá a propósitos ilícitos da Inglaterra em plena Guerra Fria. Mais exatamente, um libelo anticomunista em forma de ficção. Tony Healy, o escritor, ganha um prêmio com ele. Tudo parece bem até o jornal The Guardian (onde trabalhou Annalena McAfee, a mulher de Ian McEwan) descobrir que o autor foi financiado pelo M1 5, o Serviço de Segurança britânico. Ambos, claro, foram usados. Quem espia quem é, afinal, a pergunta de McEwan. Healy é conhecido por artigos inflamados contra os russos. Seu romance anticapitalista é tudo o que o M15 precisa. Melhor espião que um escritor, parece dizer McEwan, não existe. Pelo menos na Inglaterra, a tradição é forte. Até mesmo Dirk Bogarde, o ator de Morte em Veneza, trabalhou como agente para o Serviço Secreto, escrevendo elogiados livros (nunca publicados no Brasil, diga-se). O problema de Serena, a agente de McEwan, é que ela não está a serviço de Sua Majestade, mas dos interesses de McEwan. Comerciais, inclusive, por juntar num mesmo pacote simulacros dos agentes sexuados de Ian Fleming e os desiludidos espiões de John Le Carré. Literários, por evocar escritores apocalípticos como William Golding e J.G. Ballard, cujos truques examina e parodia. Acha-se de tudo em Serena, menos a voz de McEwan, mais interessado em escrever uma distopia futura evocando uma situação do passado. A heroína, a jovem espiã formada em matemática, vive na swinging London dos anos 1970. É uma literata frustrada. Desorientada, lê a americana Jacqueline Susann (autora do best-seller O Vale das Bonecas) enquanto rebeldes do IRA incendeiam Londres. Depois, com a ajuda do amante mais velho, seu orientador, passa a leituras mais sérias - pretexto para McEwan discutir autores de sua preferência, como John Fowles. Serena diz que não gosta de truques, referindo-se ao autor de A Mulher do Tenente Francês. Prefere, como diz, “a vida que conhece, recriada no papel”. O recado de McEwan é esse mesmo: não dá para retratar a vida no papel sem truques. E Serena, em especial, é cheio de truques. Vamos ver como os críticos ingleses, quando o livro for publicado na terra do autor - está previsto para agosto - reagem a essa leitura particular da Inglaterra dos anos 1970 como uma parábola da crise do euro no século 21. McEwan já fez exercícios visionários anteriormente. Há um conto em seu segundo livro, Entre Lençóis, chamado Dois Fragmentos, em que um pai zeloso tenta cuidar de sua filha numa Londres pós-apocalíptica (não tente ler, porque até mesmo McEwan o considera uma experiência de laboratório). Os atentados terroristas do IRA nos anos 1970 e os atuais teriam, segundo sua visão, tudo a ver com o colapso da cultura europeia provocado pela ascensão de países como o Brasil, a Índia ou a China. Serena seria, então, o anúncio de uma nova ordem - e um dos personagens diz mesmo que a Inglaterra está a caminho da barbárie ou algo pior. Não é preciso ser profeta para perceber em que buraco o mundo caiu. O nome de George Orwell (1984) poderia ser citado, não só porque trabalhou igualmente para o serviço secreto inglês (e entendia bem de surtos paranoicos), mas por ter sido um possível modelo para a criação do personagem do escritor Healey - ferrenho anticomunista como Orwell. A fixação de McEwan no pós-modernismo de John Fowles é também compreensível. Sua metaficção cita prêmios, jornais e situações reais num contexto em que o leitor é parte do jogo, obrigado a fundir narrador e personagem e a colocar um ponto final no romance, mais ou menos como no epílogo de O Mago, de Fowles, em que um jovem professor, deprimido e acossado numa ilha grega por um homem poderoso (que pode ou não ser real), quase implora ao leitor que decida o seu futuro. Como leitor, não gostaria de decidir o destino de Serena, mulher um tanto desinteressante, que passivamente espera ganhar do amante um casaco de seda ou um romance de Ford Madox Ford (bom presente, afinal). Ainda prefiro a transgressora Bovary.

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