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Horror e perícia em três tragédias aéreas

Caixa-Preta, resultado de três anos de pesquisas do escritor Ivan Sant´anna, narra a história de três acidentes com companhias aéreas brasileiras

Por Agencia Estado
Atualização:

Mórbidos por natureza, os livros sobre desastres aéreos podem facilmente transformar-se em relatos repugnantes, caso o autor se deixe levar pelo sensacionalismo. Em Caixa-Preta, Ivan Sant´anna contornou esse perigo ao optar por uma narrativa jornalística, linear, fundamentada em três anos de pesquisa ("oito horas por dia, seis dias por semana"), para escrever a história de três acidentes com companhias aéreas brasileiras. No primeiro relato, o autor reproduz, em detalhes minuciosos, o acidente com o Boeing 707 da Varig, em 1973, que pousou em chamas nos arredores de Paris e provocou a morte de 123 pessoas. No segundo, descreve o seqüestro do Boeing 737 da Vasp, que voava de Belo Horizonte para o Rio, em 1988, e no qual morreu o co-piloto. Por último, conta como o Boeing 737 da Varig que voava de Marabá para Belém, caiu em plena selva amazônica, em 1989, matando 12 das 54 pessoas a bordo. O autor explica, na introdução, que selecionou esses três desastres porque em todos eles houve sobreviventes, o que lhe facilitou o trabalho de apuração. Mas é bastante plausível supor que, sendo piloto amador e um aficionado por aviação, Sant´anna tenha considerado irresistível o fato de que, nos três casos, os pilotos conseguiram pousar em situações completamente adversas. No vôo da Varig para Paris, por exemplo, o comandante Antônio Fuzimoto fez o que até então era considerado impossível: pousar numa plantação com visibilidade dianteira zero. Com o cockpit totalmente tomado pela fumaça, Fuzimoto abriu o vidro lateral e, com a cabeça para fora, colocou um Boeing em chamas no chão. No seqüestro do avião da Vasp, o comandante Fernando Murilo de Lima e Silva, numa tentativa desesperada de desequilibrar o seqüestrador, que se mantinha de pé no cockpit, executou um tonneau (volta de 360 graus sobre o próprio eixo) e em seguida um parafuso (mergulho em espiral descendente). O autor esclarece que não há registros, na história da aviação comercial, de manobras semelhantes. Também no vôo Belém-Marabá, ainda que todas as evidências apontem o comandante Cezar Augusto Padula Garcez como o principal responsável pelo acidente, o pouso em plena selva amazônica, com o avião planando (já sem combustível), é um exemplo raro de perícia aérea. Sant´anna coletou notícias de jornais, revistas, depoimentos de sobreviventes e de especialistas, mandou cartas, e-mails, fax, leu relatórios, livros, cartas aeronáuticas e assistiu a vídeos sobre acidentes aéreos antes de escrever Caixa-Preta. Com essas informações, ele consegue reconstruir a vida de vários passageiros, esmiuçar a rotina dos tripulantes e ambientar o leitor no jargão da aviação. Em alguns momentos, porém, ele se deixa levar pelo entusiasmo e comete alguns excessos ("subiu para gastar o mínimo possível de combustível. Subiu, quem sabe, para estar mais perto de Deus"), que em nada comprometem a qualidade da obra. Detalhes preciosos da pesquisa dão ao livro um sabor especial. Destaca-se, por exemplo, o noticiário sobre o acidente em Paris, da Rádio Jornal do Brasil, no Rio, que terminava sempre com o bordão "Varig, Varig, Varig" porque era patrocinado pela empresa. Outro trecho memorável é a reprodução do diálogo pelo rádio entre o comandante Domingos Sávio, da Varig, com Garcez, minutos antes do pouso forçado na selva. Sávio: "Ô, Garcez, você não conseguiu ir para Belém por quê?" A resposta: "É que eu não tinha a indicação de Belém, a bússola estava com outra proa, a gente ficou andando entre Belém e Marabá e não conseguiu chegar a lugar nenhum. Agora estamos indo para Carajás e não temos mais combustível para ir a lugar nenhum entendeu?" O autor deixa nas entrelinhas que os três acidentes só ocorreram por interferência ou falha humana. Assim, a tragédia de Paris teria sido evitada, não fosse um cigarro aceso jogado na lixeira do banheiro; também não haveria seqüestro no vôo da Vasp se o Aeroporto de Confins tivesse detector de metais. Finalmente, o Boeing da Varig teria pousado tranqüilamente em Marabá, se piloto e co-piloto tivessem seguido os procedimentos normais de vôo. Mas é essa "casualidade", tão comum às catástrofes, que mantém o tom de suspense da narrativa. Suspense - Numa palavra, Caixa-Preta é eletrizante e assemelha-se a um desses thrillers de tirar o fôlego. A exemplo do que fez Gabriel García Márquez em Crônica de uma Morte Anunciada - no qual se sabe desde a primeira linha que o personagem principal vai morrer, mas não se consegue acreditar - Sant´anna mantém, do princípio ao fim do livro, o leitor tenso, sufocado, torcendo inutilmente para que tudo corra bem. Um dos méritos do autor é trazer à tona questões "esquecidas" pela imprensa ou pela Justiça. Uma delas diz respeito ao seqüestrador do Boeing da Vasp, Raimundo Nonato. Capturado ferido, Nonato foi hospitalizado em Goiânia e estava prestes a ter alta, quando teve de prestar depoimento à Polícia Federal. No dia seguinte, morreu no leito do hospital. O caso era tão misterioso que nenhum médico de Goiânia quis assinar o atestado de óbito. Foi preciso que a Polícia Federal chamasse, às pressas, o legista Fortunato Badan Palhares. Para felicidade geral, Badan constatou rapidamente que Nonato morrera de uma infecção causada por uma "anemia falciforme". E não se falou mais no assunto. Caixa-Preta - Ivan Sant´anna, Editora Objetiva, 328 páginas, R$ 29.

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