
15 de dezembro de 2010 | 00h00
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Todo vazamento tem a ver com a dualidade entre "casa" e "rua". Se os cargos públicos fossem absolutamente capazes de possuir os seus ocupantes, a conduta íntima seria inseparável da coletiva e os escândalos sumiriam. As reações ao WikiLeaks mostram que somos muitos, mesmo quando ocupamos cargos importantes e exclusivos e, um tanto além e fora do olhar mais trivial, que a informação não oficial e reveladora - os escândalos e fuxicos -, mesmo num mundo globalizado ainda tem a função de exercer controle social e de balizar a moralidade. Tal como acontece nas aldeias.
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Quem é mais honesto, os homens ou mais mulheres? Elas, dizia um amigo, conhecem mais e melhor a linha que separa o Bem do Mal; o que era enfaticamente negado pela maioria. As mulheres seriam sedutoras e, como Eva e Dalila, estariam sempre pensando em nos enganar. Deus nos deu a palavra, mas nos obliterou da leitura dos pensamentos uns dos outros. A vida coletiva só é possível porque ninguém, nem nós mesmos, lemos todos os nossos pensamentos, conforme descobriu Freud. Uma máquina de ler pensamentos destruiria o mundo tal como o conhecemos.
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Tio Amâncio era conhecido por seus fracassos amorosos. Perto dos outros tios - Lino, Sivoca e Miroca -, ele era uma espécie de contraponto. Enquanto o trio só falava de conquistas, ele só contava fracassos. Mas com que verve e energia ele falava deles e que lições ele tirava de cada episódio. Enquanto a frase final das conquistas era o "comer" - a consumação amorosa e o descarte da mulher -, para tio Amâncio o ato amoroso não era o fim, mas o começo. Foi ele quem me ensinou que "amor físico" era um equívoco de linguagem. Tio Amâncio considerava uma burrice separar sexo e amor pois, a rigor, não se podia distinguir um do outro e, ambos, de nenhum outro tipo de afeto, todos entrelaçados. Nesse campo, dizia ele, as mulheres tinham mais amplitude.
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Num dado momento, e intuindo os tempos modernos, falou-se em quem governaria melhor. A coisa começou com a rotineira incapacidade racional das mulheres, mas logo chegou ao enorme papel da intuição num país tão misturado e confuso como o Brasil. As mulheres ouvem mais, dizia tio Lino, e ouvir é básico para um bom governo. Daí passaram para quem seria mais duro com a corrupção e logo saíram da velha política para entrar num tema tão misterioso quanto fascinante e freudiano: quem tirava mais prazer do mundo, quem a ele mais se entregava e, nesse rumo, quem gozava mais: se o homem ou a mulher.
Tio Miroca, cuja frase "gozar é tudo" revelava uma profunda sabedoria, lembrou uma lenda indiana. Um rei condenado pelos deuses por corrupção foi transformado em mulher. Numa floresta, casou-se um camponês. Passado, entretanto, o tempo do ordálio, ele voltou à forma masculina e disse ao marido assustado: sou tua esposa e teu rei! Logo essa experiência reuniu curiosos, pois esse rei ambíguo poderia atestar quem desfrutava mais prazer. Era, disse ele, a mulher. O orgasmo masculino era mais visível, mas o da mulher poderia ocorrer em ondas ou maremotos; ou em pequenos surtos; em gritos entrecortados, como fazem as cuícas, em grandes e estremecedoras contorções, ou na leveza dos suspiros. Trata-se de um prazer sublime, completou tio Amâncio, tirando as palavras do mitológico soberano, que encerrou seus dias como os vazamentos do WikiLeaks. Uns dizem que ele viveu e morreu numa profunda melancolia; outros, entretanto, garantem que os deuses atenderam ao seu desejo secreto e ele, mulher, voltou a viver com seu marido camponês. Enjaulados em corpos e papéis, preconceitos e experiências exclusivas e singulares, como saber a verdade verdadeira, exceto pela literatura que guarda no fundo dos livros toda a sabedoria humana?
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