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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Home office

Em plantão permanente, estamos trabalhando mais do que antes da pandemia

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Atualização:

Tenho o hábito de, vez por outra, postar no Twitter a capa da revista The New Yorker da semana. É sucesso garantido. Mas repercussão igual à obtida pela capa de sua primeira edição deste mês nunca tinha visto. Só no meu perfil, quase 250 mil impressões em dois dias. Um fenômeno de identificação.  Facilmente explicável: a capa é sobre todos nós em situação de quarentena. E, mais especificamente, todos nós em home office.  O cartunista e quadrinista Adrian Tomine, californiano de 46 anos, sintetizou a presente clausura doméstica numa jovem sentada diante de um notebook, provavelmente num pequeno apartamento de quarto-sala-banheiro de Manhattan ou Brooklyn. Ela veste um short preto (Umbro) e blusa branca, calça chinelos, tem um celular na mão esquerda e um drinque (prosecco rosé?) na direita. O cenário à sua volta é que dá o clima.  No armário, um CD player guardado. Espalhados pelo chão, livros, uma caixa de compras da Amazon, uma sacola, luvas e máscaras sanitárias descartadas, um frasco de álcool em gel, um tupperware, dois pequenos halteres, dois gatos. Ou seja, o básico de sobrevivência de uma pessoa civilizada no inferno em vida a que fomos condenados em 2020.  Resisto à tentação de especular sobre a moça além do que as aparências indicam: jovem, bonita e moderna. Grande sacada detalhista do ilustrador: as pernas mal depiladas da isolada senhorita. Isolada em seu novo local de trabalho, o inevitável home office. Tomine deu a seu desenho o irônico título de “Love Life” (Vida amorosa).  A imensa maioria das pessoas forçadas a trabalhar de casa reagiu com justificável estranheza à nova situação, que muitos, por sinal, invejavam à beça antes da pandemia. Sou home office desde o começo da década de 1970, quando larguei a redação da revista Fatos & Fotos para ser livre como um pássaro, sem no entanto perder a chamada “carteira assinada”, com todos os direitos assegurados pela CLT de saudosa memória – mesmo nos ditos órgãos nanicos, como Pasquim e Opinião, a cujas redações, ambas perto de onde então morava, ia duas ou três vezes por semana, para editar algumas páginas e sobretudo fazer chacrinha.  A princípio, me invejavam e indagavam sobre como conseguia administrar meu tempo, superar a ausência do “calor da redação”, evitar a dispersão, manter distância da geladeira, etc. Disciplina, respondia. Por falar em calor, no verão os free lancers sentem mais a diferença, pois o ar refrigerado fica, como a luz, por nossa conta exclusiva. Há oito meses, no dorso da pandemia, o trabalho remoto tornou-se a regra, o consuetudinário do presente e, asseguram, do futuro. Era inevitável. Para mim, desde o surgimento da internet e do celular, esses engenhos que nos libertam de um monte de limitações, mas, em contrapartida, nos atrelam, como grilhões, ao batente e outros compromissos que preferíamos evitar. Sempre acessáveis, perdemos a paz, sacrificamos o descanso. Home office é sinônimo de full time. Ou de plantão permanente. O fato, porém, é que os espaços ocupados por redações e escritórios já podiam ter sido convertidos em apartamentos residenciais antes da covid-19. The Economist desta semana pergunta se, quando os escritórios forem reabertos, os empregados toparão voltar. Com as atuais taxas de desemprego, até quem era freelancer é capaz de pedir para voltar. Tenho lido bastante sobre o assunto. Na mais recente edição da Columbia Journalism Review, Ruth Margalit publica extensa matéria sobre o que se perde e ganha caso as redações se mantenham fechadas para sempre. Se para mim não faz diferença, muitos colegas de profissão não veem a experiência com bons olhos. Queixa mais frequente: a enfadonha mesmice ambiental e a necessidade de interação física com alguém, ainda mais premente para quem mora sozinho.  Para a maioria consultada, a sensação é de que o tempo agora anda mais rápido, e de que, mesmo descontado o acúmulo de chatices imposto pelo isolamento (higienizar as compras, limpar a casa, etc.), estamos trabalhando mais do que antes da pandemia.  Quando o isolamento social for suspenso em definitivo, o trabalho centralizado terá de ser repensado. Ele perdeu sentido e é antieconômico.  Penso nas empresas que investiram fortunas alugando, comprando e remodelando andares inteiros ou mesmo prédios para concentrar todos os seus empregados e melhor vigiá-los. A pulverização desses espaços em pequenos núcleos espalhados por diversos lugares, integrados por um circuito de comunicação eletrônica – nove fora os serviços do Zoom – e alcançáveis a pé por quase toda a equipe, é a solução com maior número de adeptos. O meio ambiente agradece. Se bem que um tanto desatualizada pelo “novo normal”, continua leitura enriquecedora a história do que chamamos de “locais de trabalho” contada por Nikil Saval e publicada seis anos atrás, com o título de Cubed – de cubículo (ou baia, no jargão da velha editora Abril). Não é um tratado sociológico comparável ao seminal ensaio de C. Wright Mills, A Nova Classe Social, mas reflexão sofisticada o bastante para saciar a possível curiosidade dos aficionados de Bartleby, Dilbert e da telessérie The Office sobre a origem e a evolução do trabalho em escritório.  “O ser humano não foi criado para viver num cubículo, mirando uma tela de computador”, critica Sakal, com quem também aprendi que a palavra “office” deriva do italiano “uffizi” e é de origem florentina. Era na Galeria degli Uffizi que se fazia e guardava a contabilidade mercantil dos Médici, no século 16. É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’

Opinião por Sérgio Augusto
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