23 de junho de 2013 | 02h20
- Os Pássaros.
Ela fez uma cara feia.
O encontro seguinte foi numa loja de vídeos. Ele mostrou:
- Olha o que eu achei...
Era Notorius. Aquele em que a Ingrid Bergman e o Cary Grant se encontram na Cinelândia e concordam que o Rio é muito chato. Ela mostrou o filme que tinha alugado. Os Pássaros. Iria rever para ver se desta vez gostava.
- Você não é obrigada a gostar porque eu gosto.
- Quero lhe dar outra chance - explicou ela, rindo.
No encontro seguinte, ele disse que Notorius tinha envelhecido um pouco. E perguntou o que ela tinha achado dos pássaros.
- Sei não... - disse ela
- Acho que vamos ter que ver juntos - disse ele.
- No seu apartamento ou no meu?
Foi na noite seguinte. Apartamento dela. Ela tinha uma amiga loira chamada Rute, muito parecida com a Kim Novak, que diplomaticamente ficou no seu quarto enquanto eles viam Os Pássaros na sala. Os Pássaros, argumentou ele, é o filme metafísico de Hitchcock. O único filme de terror na história do cinema que não tem vilões. O vilão é o mundo, é a natureza vingando-se do homem, é uma ordem pré-humana desarrumada que reage ao... Antes de terminar a exegese eles estavam se beijando.
Passaram a se ver quase todas as noites. No apartamento dela porque a TV dela era maior. Só viam Hitchcock. Às vezes discutiam.
- Disque M para Matar é um Hitchcock menor.
- O quê?! O quê?!
Passavam alguns dias sem se ver. Aí ele batia na porta dela com uma raridade que encontrara (Sabotagem, por exemplo) e faziam as pazes.
Ela se apaixonou por ele. Que de tanto frequentar o apartamento dela também se apaixonou. Não por ela, mas pela Rute, sua amiga irresistivelmente hitchcockiana. Foi o que ele tentou explicar ("Eu sou coerente! Eu sou coerente!") antes de levar uma tesourada nas costas, que não o matou, provando a sua tese, mas acabou com a relação.
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