Historiografia, a revolução

Com textos fundamentais, o volume 1 de panorâmica antologia chega hoje às livrarias

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Por Elias Thomé Saliba
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ESPECIAL PARA O ESTADO"Compilar uma antologia é propor leitura unitária de textos dispersos", aconselhava Emir Monegal. Se não foi seguido à risca, este sábio conselho do crítico uruguaio serviu de inspiração para Fernando Novais e Rogério Forastieri, organizadores de Nova História em Perspectiva, uma panorâmica antologia sobre a mais influente das tendências historiográficas dos últimos tempos. Tarefa difícil, pois como amealhar algo de novo a respeito de um tema sobre o qual já se escreveram tantos livros? Evitando os lugares-comuns na abordagem da Nova História e, sobretudo, a viciada sequência cronológica - primeiro o demonizado "Positivismo", depois a cultuada revista Annales e, por fim, no zênite, a "Nova História" -, Novais e Forastieri adotam o recorte mais amplo da história da historiografia. É este recorte que permite situar a Nova História no interior da historiografia moderna que se caracterizou - desde o século 19 - pelo diálogo com as ciências sociais então emergentes, como a economia, a sociologia, antropologia e a ciência política. Mais do que uma explicação dos critérios de seleção dos textos, o prefácio dos organizadores é uma provocadora aula de história da historiografia. Ao adotar esse ponto de vista mais geral, os autores atenuam qualquer tipo de ruptura entre a historiografia tradicional e a moderna. É certo que esta última se distinguiu da tradicional pelo diálogo com as ciências sociais e pela aspiração à cientificidade; mas não abandonou suas dimensões anteriores, sobretudo aquela que originou a necessidade da história como narrativa do acontecimento e como antiga criadora da memória social. Quando se argumenta que a história produzida por cronistas medievais - como o Venerável Beda - não era "científica" não se percebe a continuidade daquele núcleo resistente do discurso do historiador que é a narrativa do acontecimento. É esse núcleo que continua a persistir na historiografia moderna - "do Venerável Beda ao venerável Braudel", ironizam os autores - e ao ignorá-lo, os intérpretes da Nova História aceitam que a história é uma ciência social como as outras, e o diálogo que mantêm com elas não se distingue daquele que as demais mantêm entre si. O problema desaparece, mas o debate se perde nos descaminhos de verificar quais das disciplinas obtém mais abrangência. Já a historiografia moderna - cujo processo de constituição percorre todo o século 19, culminando no período da belle époque - se desdobra em "escolas" as quais se diversificam pelo maior ou menor influxo das ciências sociais. O momento que se segue, cujo ápice é a criação da revista Annales (1929) - marca, por assim dizer, a institucionalização desse diálogo com as ciências sociais. Esse empenho multidisciplinar também acompanha os três períodos daquela corrente no decorrer de todo o século passado: na "fase Bloch/Febvre", no anteguerra, o intercâmbio é generalizado com todas as disciplinas, predominando a sociologia; na "fase Braudel" (até os anos 1970), o diálogo predominante é com a economia; e na terceira, até a atualidade (o da "Nova História"), o diálogo central é com a antropologia. Segundo Novais e Forastieri, entre esses três momentos ocorre uma tensão entre uma história de cunho mais explicativo e estrutural e uma história mais narrativa e menos conceitual. É essa tensão, originária do confronto da historiografia antiga com a moderna, que se interioriza no coração do discurso historiográfico e define suas diferentes concepções. É assim que a Nova História se contrapõe à tendência dominante que a precedeu, acentuando a vertente narrativa em detrimento da explicativa (daí seu sucesso de público), e levando ao limite esta tendência, isto é, quase tangenciando a narrativa pura, voltando às formas primitivas da historiografia. É também esta perspectiva - colocada no título do livro - que baliza a seleção dos quase 50 textos. Na primeira parte, Propostas, o leitor pode tomar contato com os textos clássicos, de Lucien Febvre a Le Goff ou Pierre Nora. Na segunda, Desdobramentos, saindo dos limites franceses, aparecem textos de autores como Mastrogregori (Itália) Natalie Davis (EUA). A terceira parte, Debates (que vai compor o segundo volume, a sair em 2012), inclui importantes textos inéditos em português, como os de George Huppert, Gerard Noiriel ou Ignácio Olábarri. Pela extensão e variedade, percebe-se que a antologia cobre uma lacuna na bibliografia internacional. Os autores também não hesitam em submeter o marxismo e a historiografia dele derivada - ao mesmo enquadramento. Ao longo do século 19, Marx constrói sua obra no momento de formação das ciências sociais, que se constituem ao recortar as diferentes esferas da existência. Só que o marxismo parte do pressuposto contrário: seu esforço visa a conceituar todas as esferas da existência, para elaborar uma teoria da História. Abandonando os grandes temas pelas migalhas do cotidiano, aqui, se explica, também por que a Nova História se apresentou como crítica do marxismo: dentre os grandes paradigmas, ele era o mais notável esforço de criar uma teoria articuladora de todas as instâncias da História. Uma rematada impossibilidade - segundo os autores -, pois exigia a reconstituição total do fluxo dos acontecimentos e a utopia de um futuro previsível. É neste sentido que os autores, recorrendo ao famoso argumento da aposta de Pascal, se definem como "marxistas pascalianos": não basta ao historiador o conhecimento das estruturas é preciso reconstituir os eventos. E transitar das estruturas para os acontecimentos é aventurar-se no território da indeterminação. É esta aventura o ofício do historiador. É preciso, pois, apostar. E única coisa na qual os leitores podem apostar, além da qualidade do livro, é que a história continua, pois - como dizia Huizinga - ainda temos necessidade civilizacional de acertar as contas com o passado. ELIAS THOMÉ SALIBA É PROFESSOR DE TEORIA DA HISTÓRIA NA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE RAÍZES DO RISO (COMPANHIA DAS LETRAS)NOVA HISTÓRIA EM PERSPECTIVAOrganização: Fernando Novais e Rogério Forastieri (Cosac Naify, 560 págs., R$ 79). Lançamento: Livraria da Vila. Alameda Lorena, 1.731, tel. 3062-1063. Hoje, às 19 h.

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