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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|História de Pedro Honorato, o político honesto

A lenda fala de um homem diferente. Uma pessoa que não mentia, um sujeito ofensivamente honesto que tinha por nome Pedro Honorato

Atualização:

Vovô Raul, cujo único luxo era fumar um charuto aos domingos, contava a propósito da falta de limites dos políticos que, na verdade, é ocultamente um limite; a história de Pedro Honorato – ou a lenda do político honesto.  “A lenda fala de um homem diferente. Uma pessoa que não mentia, um sujeito ofensivamente honesto que tinha por nome Pedro Honorato. Criado por mãe rezadeira e pai lavrador, o menino fez jejum e, ajoelhado em caroços de milho, prometeu a Deus ser honesto.”  Sério, jamais mentiu. Jamais “tirou” algum doce da dispensa ou alguma moeda esquecida no bolso do casaco do seu pai. Nunca disse um “mais ou menos” e, eis o extraordinário no caso, era bastante capaz de dizer “não!” sem problema. Na sua vida, compromissos e jeitinhos não existiam. Estudioso, Pedro seguiu para a capital de onde voltou com um diploma e mais honesto ainda. A cidade grande, com seus encantos e anonimatos, não foi capaz de corrompê-lo.  Impressionado com o descalabro de sua cidade, Pedro candidatou-se a prefeito. Sua campanha foi bem-vinda – enfim, um político que não mente, diziam – e coincidiu com um vil e habitual roubo de dinheiro destinado à saúde. Pedro teve uma vitória eleitoral tranquila e, conforme prometeu, começou sua administração despedindo duas funcionárias que tinham emprego, mas não trabalhavam. Uma era sobrinha de um senador; a outra era amante do prefeito derrotado. Ato contínuo, “limpou” o setor financeiro, pondo no olho da rua nada menos do que 25 funcionários que estavam implicados em todo tipo de delitos.  Seus pais, aparentados e padrinhos dos exonerados, pediram que ele reconsiderasse. Honorato negou. O padre Pio arguiu que até a honestidade poderia ser orgulho, um pecado capital; e o professor Treado Silva, que não dava aulas, sugeriu filosoficamente que tanto o limite quanto sua ausência são limites.  Seu pai ponderou falando em exagero e o que havia começado como um apelo virou admoestação moral e terminou em ingratidão filial. Aturdido, Pedro rompeu com sua família.  Chegou tarde em casa e buscou conforto no amor conjugal. Mas, no deleite dos corpos entrelaçados, sua esposa sussurrou o nome do seu irmão caçula – Lelinho, um vagabundo notório – para o cargo de secretário. Pedro gritou “de modo algum!” e, de imediato, viu o amor acabar e ouviu a ameaça da mulher: “Agora, seu merdinha, pense duas vezes antes de me pedir novamente ‘aquilo’”, explodiu uma antiga doce Amelinha batendo a porta.  Frustrado, solitário e com fome, Pedro foi ao bar local. Lá, os homens bons da comunidade o receberam como um bandido. Um “leproso”, como disse Beto Chupeta, um palhaço do circo local que recebia generosos “subsídios culturais” do antigo prefeito.  Ao descobrir-se exilado por sua honestidade, Pedro Honorato tentou uma piada. Ouviu um horrível silêncio. Então, um ex-companheiro de campanha disse-lhe com voz embargada: “Quem não retribui o que recebe não é Homem!”. Pedro saiu do bar para dormir na pracinha do grupo escolar.  Conta a lenda que, nos meses seguintes, Pedro Honorato governou só. Sua honestidade fez com que perdesse amigos, parentes e esposa. Na casa dos pais para onde se mudou com os filhos, a mulher de Pedro comentava a vergonha de ter um marido que trocava suas amizades pelas normas da política.  “Pedro fez o pior e o mais melancólico governo de Pé na Cova”, terminava Vovô Raul. Até hoje, ele medita sobre o que fez de errado. * Meu velho avô concluía com um sorriso e uma baforada do seu charuto baiano de boa qualidade. Ele soprava a fumaça e encarava cada um dos seus filhos, enteados e netos.  Meu tio Marcelino, autoproclamado comunista, dizia que o caso era uma lenda fascista; meu tio Silvio replicava que, pelo contrário, era um mito antirrepublicano. Tio Mário, o caçula, dizia que era a mais pura verdade – para tanto, bastava ler os jornais. Eu, com minha memória de literato de meia-tigela, guardei o caso e o reproduzo pensando na eleição próxima. Acho que, na campanha, teremos uma multidão de Pedros Honoratos que, uma vez instalados nas suas prerrogativas de poder praticar com total apoio legal a ignorância, o radicalismo e a mentira como valores absolutos, veremos surgir de dentro da cada um deles um outro Pedro – o Malasartes. Aquele que incomoda porque jamais foi discutido, exceto por um tolo...  Seria essa uma questão de raiz de um país enraizado na malandragem e na hipocrisia cordial?  *É HISTORIADOR E ANTROPÓLOGO SOCIAL, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’

Opinião por Roberto DaMatta
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