Hiram, o camelinho manco

Colunista explora o lado literário do coronel Muamar Khadafi, e tenta decifrar a mente do controvertido líder líbio.

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Por Ivan Lessa
Atualização:

Mencionei aqui mesmo, outro dia, nas breves pinceladas que dei perfilando o controvertido líder líbio, ora em estado de suspensão política, Muammar Kadafi, tendo tido o cuidado de deixar claro que há 37 ortografias diferentes para seu sonoro nome em árabe líbio. Como estou sempre mais voltado para as coisas do espírito do que da vil matéria, destaquei uma de suas obras literárias, aliás a única, Fuga para o Inferno, publicada em 1998, no momento em falta nas livrarias devido ao alto índice de popularidade (boa ou má, tanto faz; celebridade sempre vende) do chamado, por más línguas, "Louco do Maghreb ". Louco mas com 70 bilhões de dólares espalhado nos mais respeitados bancos do Ocidente e do Oriente também. Tá certo, congelaram, por aqui, um tico, mas mesmo assim ainda dá pra viver e contratar muito mercenário de primeiro time. Uma fila para se alistar que não acaba mais. Para não falar do fato de que o "coroné" se julga o homem mais amado de seu país. Capaz. Adentrando e tentando adivinhar o que se passa na mente do valoroso líder: "Desci demais à Terra. Quero asas para voar e ver se é realmente o amor de meus compatriotas que continua a manter-me alado, invulnerável, singrar estes céus agitados que venho vivendo. Sim, fugi para a banda de cá, ou de lá, de meu adorado país. Depende do ponto de vista. Não perdem por esperar quem mal me deseja. Lá profetizei em meu pequeno livro de contos (193 pgs.) entre esforços literários de maior e menor alcance. Tive a honra de ser, como já disse, e vivo repetindo, prefaciado pelo ex-secretário de Imprensa de John Kennedy, um dos mais nobres homens a liderar os Estados Unidos: Pierre Salinger. Que fuma a mesma marca de charutos que eu e a quem com cubanos legítimos, cohibas, por vezes presenteei. Pierre, pois tenho essa intimidade, não poupou elogios à minha febre criativa. Disse que sou isso e aquilo, tudo de bom e mais não digo pois elogio em boca própria é vitupério. Disse-se marcado por um de meus contos mínimos, no seu entender "uma obra-prima" de insinuação e concisão. Cito o conto em sua íntegra, para verem que não mentimos, Pierre e eu. O título da opúsculo em questão, este mínimo-conto, é O Suicídio do Astronauta e assim segue todo, mas todo mesmo, seu texto: "O astronauta cometeu suicídio." "Ponto final, mais nada. Que queriam? Que eu me alongasse e desse nome, endereço e circunstâncias do infausto acontecimento? Vive-se a rigor e a rigor se morre também. Honra ao astronauta. Honra maior a quem anotou os detalhes de seu fim." (Uma pequena pausa para os bem pensantes curiosos: descobri, graças a um de meus súditos ainda leais e não esses cães imundos hidrófobos pagos por interesses alienígenas, que o pequeno volume, embora caro, pode ser encontrado na internet via Amazon. Os canalhas dos acontecimentos se encarregaram, ao menos, de valorizar um, unzinho que seja, de meus milhares de legados ao povo que tanto amei, amo e só agora, graças às vis influências estrangeiras, decidiram voltar seus impropérios contra aquele (eu) que nada mais fez e fará em vida do que serví-lo. Vale a pena reler a história do astronauta.) "Mas basta. O que eu quero mesmo é citar o outro conto que Salinger considerou antológico e minha modéstia, a não ser em hora de perigo, se recusa a citar. Elogio em boca própria etc. Vou direto ao bruto. Fruto de horas de labor intenso e de fazer do coração tripas (sei o que estou dizendo). Chama-se Hiram, o Camelinho Manco. Eu poderia ter feito como no caso do lamentável astronauta, mas pareceu-me que um camelo manco, na ordem natural das coisas do deserto, vale bem mais. Transcrevo-o embaixo na íntegra, para me dar coragem de continuar a luta, para incentivar os que em mim - louvados sejam - ainda confiam e amam além de todos os tiranos perseguidos do mundo. Sua forma, a do conto em questão, é rígida de propósito. Não evitei o encontro com o lugar-comum. Outros são os encontros a serem evitados." "Era uma vez um pequeno camelo líbio cujo dono houve por bem batizá-lo de Hiram. Isso porque manquitolava da pata esquerda traseira. Era um camelo inútil, mais um traste e uma despesa na vida do dono, que exercia a nobre profissão de funileiro. Sensato que era, Nassib, pois esse o nome do dono da tenda e do estabelecimento comercial, ao ver o bicho se arrastando, com sua poucas semanas de vida, pelos arredores da tenda, não teve dúvida. Tomou de um pedaço de pau e arrebentou-o todo, da cabeça aos pés.Foi sangue miolo, tudo, por todos os lados. Estavam agora salvas duas vidas, a de Nassib, vida útil, e a de Hiram, vida inútil. A sociedade, mesmo no deserto, precisa manter uma ordem e um equilíbrio. Assim se passou o fim de Hiram e assim continuaram os dois até que Hiram começou a feder e Nassib fez com que um de seus empregados, Haroun, o Idiota, o enterrrasse bem longe, na mais distante duna possível. Viver é uma lição incessante." BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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