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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Hinos da harpa

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Por Milton Hatoum
Atualização:

Na próxima sexta-feira é dia da santa ceia. Muita gente dos três morros participam do culto. Sim, muitas orações... O senhor já leu a Bíblia? Então conhece as mensagens... No momento da ceia até os passarinhos ficam quietos, depois eles cantam, alegres. Conhece os passarinhos da mata, criaturinhas de Deus? O tié, redondo e vermelhinho, coração que voa... O saíra sete-cores é o mais exibido... Quando abre as asas, parece um pedaço de arco-íris. O capitão deles é um pretinho de crista vermelha. Param para ver a gente comer o pão, a carne de Cristo; param para ver a gente beber suco de uva, o sangue de Cristo. Depois a gente reza e pede muitas coisas a Deus. O que eu peço? Saúde e paz. Peço a Deus que meu marido largue uma safada que mora lá pra baixo, no meio de um bambuzal. Uma vez peguei os dois deitados na praia, outra vez na porta de um barraco. Ele é da igreja, mas não aparece na santa ceia. Dá dinheiro pra comprar feijão, arroz, óleo e açúcar. Só isso. Eu pago o aluguel dos dois cômodos, compro a roupa e os sapatos das minhas duas meninas. Penso nelas e em Jesus, e rezo quando subo o morro, pedalando... Uma hora de bicicleta, da praia até a casinha onde moro. Às vezes sinto medo de ser assaltada na trilha, por isso eu rezo... Uma vez, em março ou fevereiro do ano passado, eu estava tão animada com as orações, que levantei os braços pro céu, perdi o equilíbrio e caí. Mas não me machuquei, a bicicleta não quebrou, Jesus me protegeu. Fiquei sentada nas folhas, ouvindo os bichinhos da natureza, conversando com eles. Depois me alembrei das minhas filhas e rezei um Pai-nosso para os professores da escola. Esses coitados adoecem muito, ganham uma mixaria, as duas meninas ficam semanas sem aulas. No verão e nos feriados eu digo pra minha patroa que a escola estadual é uma fraqueza de dar dó, minhas filhas não têm aulas de matemática nem de português; digo que tenho medo de drogas, muito medo do futuro das meninas. Com esse pai safado, com essa escola sem aulas, o que minhas filhas vão ser? O senhor sabe? O senhor imagina? Eu estudei em Santos, a patroa de minha mãe me colocou numa escola do governo e eu aprendi alguma coisa. Quer dizer, aprendi o que eu sei, e aprendi muito com a vida... Quando minha mãe morreu, saí da escola pra cuidar dos meus irmãos, eu queria ajudar meu pai. Essas trovoadas... Tenho que ir embora, lá em cima está escurecendo. Quando cai um toró, a trilha fica alagada e eu não posso pedalar. O que eu faço? Vou andando... Subo devagar, com a bicicleta nas mãos... Quase duas horas até o alto do morro. Já andei muitas vezes na trilha inundada, meu pensamento na santa ceia e nas minhas filhas. Quando eu paro pra descansar e rezar, não escuto os trovões nem o barulho da chuva, os pássaros se escondem nas árvores, mas eu sei onde eles estão. A mata fica escura, tudo fica escuro e úmido, mesmo assim vejo os olhos escondidos dos passarinhos, vejo o harpista tocar na ceia de sexta-feira, e isso me dá esperança. Os acordes baixinhos vêm lá de cima, escuto os hinos da harpa, os sons me animam e eu continuo a subir...

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