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Hermano Vianna concorre ao Multicultural Estadão

"Fiquei surpreso, mas alegre e honrado com a indicação", diz o antropólogo, responsável pelo projeto de mapeamento da produção nacional Música do Brasil

Por Agencia Estado
Atualização:

O antropólogo Hermano Vianna foi indicado para o maior prêmio da TV americana recentemente, o Emmy, por conta da série Música do Brasil, na categoria Arts Documentary. Para fazer a série, um amplo levantamento da tradição musical em progresso do País, ele percorreu 80 mil quilômetros pelo Brasil, indo de Curiaú (Amapá) a Osório (Rio Grande do Sul), e gravou mais de cem performances de grupos musicais diferentes. Produziu uma série de 15 programas de TV, caixa com quatro CDs, livro com 132 fotografias e um web site (www.musicabr.com.br). Admirador tanto de Dona Elza do Caroço quanto de Sepultura e Aphex Twin, Vianna foi indicado para o Prêmio Multicultural 2001 Estadão Cultura por um trabalho de abrangência inédita na cultura nacional. Irmão do ídolo pop Herbert Vianna, dos Paralamas do Sucesso, Vianna também é o curador (ao lado de Monique Gardenberg e Carlos Nader) do mais novo e ousado evento multimídia do País, o Carlton Arts, que será realizado em São Paulo no fim de junho. Agência Estado - O que achou de ser indicado para o Prêmio Multicultural Estadão? De emparelhar forças com gente como o escritor Drauzio Varella, o escritor e crítico teatral Sábado Magaldi, Tom Zé, a arquiteta urbanista Regina Meyer e o escritor Milton Hatoum? Hermano Vianna - Fiquei surpreso, mas alegre e honrado com a indicação, sobretudo por estar em companhia de pessoas que tanto admiro. Nesses momentos, é difícil ir além do lugar-comum. Mas vou arriscar: acho que sou o maior crítico do meu trabalho. Desconfio dos elogios, considerando-os quase sempre imerecidos. Para ser pretensioso e excessivamente sincero: tento fazer o que é necessário ser feito, o que acho que deve ser feito; não busco reconhecimento. Assim, tenho orgulho de algumas coisas que fiz na vida, mas não por razões pessoais. Um projeto como o Música do Brasil, apesar de suas limitações evidentes, tem uma importância inegável, é algo que deveria ter sido iniciado há muito tempo. Fico contente por ele existir, e essa felicidade independe de ter participado da sua produção. Tenho pena do projeto ser tão pouco conhecido. Espero que, com a indicação para o Prêmio Multicultural Estadão, mais pessoas se interessem pelo Música do Brasil, divulgando e aproveitando melhor o enorme material já registrado, e o projeto - que está longe da conclusão - possa ter continuidade. Adoraria que mais pessoas contribuíssem para que o mapeamento da produção musical brasileira se tornasse o mais completo possível, e que o projeto fosse realmente de todo mundo. Parece um desejo piegas, pode até ser, mas é muito profundo em mim. Como antropólogo, você se detém com mais afinco sobre a música como objeto de desvelamento de processos sociais. Demonstra conhecer também processos semelhantes em outros países como a música branca eletrônica européia e a música negra americana. Poderia dizer que a nossa música popular tem - digamos assim - responsabilidade sobre o que somos hoje? A música popular ocupa um lugar central na construção de nossa identidade, da percepção de nosso lugar no mundo. É uma demonstração vibrante da riqueza e da vitalidade da cultura brasileira, tanto para nós mesmos quanto para outros povos. Outro dia, mostrei o material do Música do Brasil para John Pareles, responsável pela editoria de música popular do The New York Times. Ele me perguntou impressionado: que outro país tem tanta música? Respondi mais impressionado ainda com a pergunta que vinha de um americano: o teu país tem muita música! Mas a mestiçagem musical proposta pela música brasileira é realmente uma conquista inigualável. É um mistério e uma dádiva. Não é responsável por nenhum dos nossos problemas. Apenas indica o caminho que, se fôssemos realmente corajosos, deveríamos seguir. Em "O Mistério do Samba", você rastreia o processo de assimilação e aceitação do samba pela cultura nacional, após um período de negação do gênero. Como avalia a situação do samba atualmente? Não retomou sua condição de marginalidade nas fronteiras internas da cultura brasileira? O samba anda muito bem, obrigado. Vive uma fase de grande variedade e popularidade, do comercialismo do novo pagode ao anticomercialismo do chamado samba de raiz. Há qualidade de um extremo ao outro. Da sociologia urbana do Rio ("O Mundo Funk Carioca" e "Galeras Cariocas"), você foi em direção à grande diáspora da música brasileira em rincões mais distantes ("Música do Brasil"). Entre um e outro extremo, o que é que persiste como uma marca nacional, em sua opinião? O nacional não é algo fixo, imutável. O nacional muda a cada instante, é uma produção coletiva sempre renovada. E não há cultura nacional isolada, nem que possa ser pensada como um todo homogêneo. As culturas estão sempre a trocar informações umas com as outras; são sempre heterogêneas, com grupos diferentes definindo aquilo que é comum a todos, ou que é nacional, de maneiras também diferentes. Pensando assim, não vejo as realidades musicais brasileiras, a urbana e a dos "rincões mais distantes" como territórios separados, com barreiras intransponíveis entre eles, e ouço tudo, seja Sepultura ou Dona Elza do Caroço, com os mesmos ouvidos - e gosto de tudo com a mesma perspectiva estética. Há uma troca constante entre o rural e urbano. Acho que o título daquele excelente disco do Paulo Moura descreve o que quero dizer: Confusão Urbana, Suburbana e Rural . Poderia acrescentar, como já fiz num texto para o Pagode Jazz Sardinha´s Club: Confusão Global, Local e Periférica. Há um trecho do livro "Música do Brasil", que diz: "Brincadeira: esse é o nome usado pela maioria dos brasileiros para se referir aos seus folguedos, folias, autos e festas. Há muita brincadeira no Brasil. Pode-se falar até num "espaço da brincadeira brasileira", paralelo à vida real. Dentro dele, tudo é possível." Há quem veja essa conclusão como algo que justifique talvez num entroncamento com a psicologia um comportamento "protejamo-nos de nós mesmos". Você concorda com isso? Nesse espaço idealizado criado pelo folguedo, você viu também uma dialética política e cultural? O tal "espaço da brincadeira" não deve ser pensado como um território de fuga, ou de negação da realidade. A brincadeira não nos protege de nada, não escamoteia nada. A brincadeira não é o ópio do povo. Ao contrário: a brincadeira deixa tudo bem exposto, tanto a realidade quanto a fantasia - e quem vai dizer que a fantasia não faz parte da realidade? -, e nos torna mais fortes para o enfrentamento da realidade sem graça. Vi muitas brincadeiras em que a crítica política é feita da maneira mais contundente, mais imediata. E mesmo nas brincadeiras aparentemente mais fantasiosas, o que está sempre em jogo é a "boa vida" ou uma idéia de como a vida deveria ser para ser boa. Isso é política da melhor qualidade. "Se eu soubesse ler, eu saberia explicar melhor", diz em depoimento também no livro "Música do Brasil" um palhaço do Auto dos Guerreiros de Alagoas. "Não sei ler, não sei escrever", diz seo Antônio, tamborzeiro de Maçambique. Em suas andanças pelo País, como viu a transmissão da cultura musical de uma geração para outra? É uma transmissão desprovida de consciência, puramente intuitiva? Não é nada puramente intuitiva. Cada comunidade encontra estratégias diferentes para transmitir e renovar suas culturas. Nas comunidades mais pobres do Brasil vi o videocassete ser usado como material "transmissor". Os grupos folclóricos querem gravar CDs, querem ter páginas na Internet, como já tem, por exemplo, a Comunidade dos Arturos. E, como escrevi no texto que acompanha os CDs de Música do Brasil, cada mestre de brincadeira pode ser pensado como um DJ, mixando pedaços de "tradições" diferentes. Portanto, a transmissão é também uma recriação, muitas vezes extremamente consciente e ousada. Você diz que "samba de roda, maracatu, forró, funk pagode, reggae, congada, sertanejo, quase tudo é folia, quase tudo é divino em nossa música". Ao mesmo tempo, registra também as vorazes mudanças de assimilação e de transformação das manifestações musicais do País. É o caso do DJ Maluco, a house tribal da Amazônia. Como artífice do Carlton Arts, um evento que busca as conexões históricas da cultura internacional - Stockhausen e Aphex Twin, por exemplo -, o que você poderia dizer que subsiste de Brasil na cultura club, o drum´n´bass de Marky, o carnaval eletrônico de Anvil FX? Qual é a marca mais evidentemente nacional desses artistas? Marky Mark ou o DJ Marlboro criam o nacional, assim como um mestre de congada ou um sambador de maracatu rural. Não é necessário botar um tamborim no drum´n´bass para soar brasileiro. Quem tem autoridade para definir o que é brasileiro e o que não é? Há muitas definições contrastantes e rivais de brasilidade, e não me interessa encontrar um mínimo denominador comum para todas elas: prefiro incentivar a diversidade. Em suas "Missões Folclóricas", Mário de Andrade foi em busca da pureza e da originalidade. Você e sua trupe alegam que foram também em busca da ´contaminação´. O que há de mais positivo na contaminação, em sua opinião? Mário de Andrade era muito esperto: sua busca de pureza, nem sempre definida do mesmo modo em momentos diferentes de sua obra, não era nada ingênua, mas sim fazia parte de um projeto político-cultural bastante complexo, que tinha a ver com o debate intelectual do modernismo brasileiro e com a invenção de uma determinada consciência nacional, uma das muitas que já tivemos. Mas eu realmente acredito que em cultura não há nada puro ou absolutamente original. A "contaminação" é a regra, não é algo que possa ser incentivado ou não, que possa ser visto como positivo ou negativo. Pode ser positivo ou negativo, dependendo do contexto, da época. Eu gosto de mistura, de encontros de diferenças, quanto mais claras as diferenças, melhor. É uma posição política: é uma maneira de combater os vários disfarces do totalitarismo. Faz parte do nosso longo aprendizado da tolerância. Caetano Veloso, recentemente, insurgiu-se contra o que chama de leviandade da crítica nacional contra artistas populares como Sandy e Júnior e Ivete Sangalo, contra os pagodeiros e os funkeiros. A tarefa crítica de separar o joio do trigo é banal, a seu ver? Tem sido uma manifestação seletiva de uma elite? Qual é sua opinião a esse respeito? Caetano tem razão ao exigir do jornalismo cultural brasileiro mais qualidade e menos leviandade. Dos anos 80 para cá, passou a ser moda em vários cadernos culturais brasileiros a procura desesperada do furo e da polêmica, que nada têm a ver com a reflexão crítica. Falar mal de tudo que é popular tornou-se um esporte, o modo mais rápido para o jornalista se tornar uma vedete "engraçadinha". Sinto muita falta de um acompanhamento crítico dos meus trabalhos. Não espero elogios. Aliás, no processo cultural, o mero gosto ou não gosto é o que menos interessa. A crítica pode ser uma obra de arte (como prova, por exemplo, a obra de Sábato Magaldi, indicado para este Prêmio), a crítica deve propor reflexões interessantes. Não me lembro, por exemplo, de boas críticas, falando bem ou mal, para o Programa Legal e o Brasil Legal, críticas que nos ajudassem a pensar melhor o que estávamos fazendo. Ainda espero uma boa crítica do Música do Brasil, alguma que escape da pressa das matérias de lançamento, e tente analisar em profundidade o material ali documentado. Muita coisa apresentada no Música do Brasil não possuía nenhum registro anterior. A audição dessas novas/velhas músicas, desse vasto panorama, traz alguma novidade para o modo como pensamos a musicalidade brasileira? Estou tão "dentro" do projeto que não consigo ter distanciamento crítico para fazer esse tipo de análise. Conheço muitos críticos que poderiam escrever textos brilhantes sobre o assunto. Mas imagino que o esquema competitivo entre as redações seja tão opressivo - tão opressivo como aquele que governa nossa música comercial -, que não sobre nenhum tempo para esse tipo de crítica de que sinto falta. Devemos aceitar tal situação? Além disso: gosto de muita coisa do novo pagode, da música baiana pós-Olodum-e-Luiz-Caldas, do funk carioca. Vejo qualidades musicais incontestáveis nesses estilos musicais. Gosto mesmo. Tanto quanto gosto de Stockhausen ou Aphex Twin.

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