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Hatoum a 24 quadros

Escritor acompanha adaptação para o cinema de 'Relato de um Certo Oriente' e 'Órfãos do Eldorado' pelos cineastas Marcelo Gomes e Guilherme Coelho

Foto do author Ubiratan Brasil
Por Ubiratan Brasil
Atualização:

O sucesso da voz de veludo do escritor Milton Hatoum não é recente - quando jovem, em Manaus, ele era o crooner da banda Stepping Stone (nome retirado de uma das canções do grupo The Monkees), que se apresentava tanto em bailes de debutante como em festas na zona do meretrício. E, antes de se tornar autor consagrado, Hatoum arriscou-se também como ator, assumindo o papel secundário no trabalho de conclusão de curso de um colega de cinema, quando estudava em Paris. "Eu tinha uma voz razoável quando cantava, mas hoje soa como a de um leão abatido", diverte-se ele, cronista do Estado. "Já no cinema, minha participação foi medíocre."O conflito com outras áreas artísticas, porém, não atinge sua literatura - depois de Dois Irmãos chegar ao teatro em 2008 (e logo à TV), é a vez do cinema mirar suas câmeras para a curta mas profunda obra. Marcelo Gomes, diretor de Cinema, Aspirinas e Urubus e do simples mas fascinante Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (ao lado de Karim Aïnouz), vem trabalhando no roteiro inspirado em Relato de um Certo Oriente, o primeiro livro publicado por Hatoum.Ao mesmo tempo, Guilherme Coelho, que destrinchou o rap carioca no documentário Fala Tu, se debruça diariamente em Órfãos do Eldorado, o mais recente do escritor, a fim de começar sua versão cinematográfica. Ao perceber que ambos trabalhavam com o mesmo autor e, grande coincidência, com a mesma corroteirista (Maria Camargo, especialista na literatura de Hatoum), Gomes e Coelho decidiram unir esforços, trocando ideias e sugestões. A parceria já está afinada, como observou o Estado na reunião que os dois cineastas tiveram com Hatoum, na quinta-feira."Vocês são corajosos", brinca o escritor. "Escolheram adaptar obras muito difíceis." Foi justamente o desafio que motivou os cineastas. "Preferi o Relato por ser um retrato da memória", comenta Gomes, admirado com a narrativa situada entre o Oriente e o Amazonas, que revela a busca de um mundo perdido, reconstruído nas falas alternadas das personagens. "Antes de começar o roteiro, preciso descobrir como é a luminosidade e o espaço físico de Manaus, pois isso é fundamental para eu decidir o rumo da história."Ciente da importância do silêncio, Marcelo Gomes pretende também manter poucos personagens, a fim de concentrar a ação. "Neste momento, a única imagem que me vem à mente quando penso no romance é a de uma casa cuja porta é de vidro."Também Guilherme Coelho disseca a obra escolhida. No encontro com Hatoum, ele procurou detalhar a relação do escritor com seu avô, remetendo ao personagem de Órfãos do Eldorado, Arminto Cordovil, que se dispõe a ouvir um velho com fama de louco. "Vila Bela é uma cidade inventada, mas tem muitos traços de Parintins, cidade que fica no médio Amazonas e onde estive nos anos 1960, quando encontrei o mesmo velho que falou com meu avô", relembra Hatoum. "Mas ele se recusou a conversar."Autor de uma obra com referências biográficas, Milton Hatoum curiosamente aconselhou os cineastas a não se fiarem na precisão da memória. "Nem mesmo no que escrevi, pois os melhores personagens são os mais nebulosos, fluídos, vagamente inspirados em alguém", comenta, desgarrado da própria obra.Ainda em fase de elaboração do roteiro, Gomes e Coelho pretendem ter o primeiro tratamento pronto em poucos meses. Para isso, eles mantêm contato constante com o escritor, trocando ideias. "Criar um filme é um jogo de paciência semelhante a escrever um romance", ensina. "É preciso entender o funcionamento da história para evitar falhas."Apesar de conferir total liberdade aos diretores, Hatoum confessou quais cenas que gostaria de ver nos filmes - em Órfãos, o barco carregado de cegos e, no Relato, a morte de Emir. E, abusando da liberdade conferida, os cineastas pretendem convidar o escritor a reviver a carreira de ator e fazer uma ponta. Hatoum aceitou.

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