'Habibi' mergulha nos subterrâneos do Islã

Nova graphic novel de Craig Thompson mostra um mundo de fé, escravidão, abuso e esperança

PUBLICIDADE

Por JOTABÊ MEDEIROS - O Estado de S.Paulo
Atualização:

Que tipo de árvore firmaria raízes na imundície? A que não tivesse opção, talvez. A frase da personagem Dodola na graphic novel Habibi, de Craig Thompson, resume de certa maneira a visão do homem que o desenhista expressa em seus quadrinhos: nenhuma barbárie é maior do que a humanidade. Isso já se podia distinguir em sua primeira grande história em quadrinhos, Retalhos (2004), na qual ele narrava o abuso que sofreu na infância e a intolerância que marcou sua adolescência. Esse é um quadrinista que não desenha "historinhas", seus volumes são calhamaços de 500, 600 páginas - a inspiração para tal fôlego narrativo, ele contou, veio de Lapinot et les Carottes de Patagonie, de Lewis Trondheim, publicado na França em 1992 pela L'Association.Habibi, um de seus trabalhos mais impressionantes (publicado agora em tradução brasileira pela Companhia das Letras), foi lançado nos Estados Unidos no ano passado. Trata-se de uma história que se passa em um país ficcional do Oriente Médio (com escopo de Arábia Saudita) e é permeada pela escravidão (a protagonista, Dodola, é vendida pelos pais aos 9 anos de idade). Castração, estupro, violência doméstica, opressão intelectual, religiosa: os temas aqui parecem os de uma Mil e Uma Noites do Inferno, um pesadelo cheio de arabescos. O trabalho de Thompson o coloca num nicho específico dos quadrinhos, situando-o num extremo oposto do quadrinho underground - e mais próximo da tradição do grande romance geracional americano, de autores como Mark Twain e J.D. Salinger. Não é por acaso que seus heróis são crianças sobrevivendo em um mundo hostil - seja o dos pais e da autoridade social (em Retalhos), seja no da autoridade religiosa e da tradição (Habibi). "Contar histórias estimula sentimentos sobre todo tipo de assunto. Os temas óbvios, de fato, estão só na superfície. Mas, quanto mais fundo você lê uma história, pode se confrontar com o mistério puro da existência", disse Thompson ao Estado em 2009. Habibi vai surpreender o leitor tradicional de gibis, porque é difícil enquadrá-lo em um universo específico. É pesado para crianças. Adolescentes irão entendê-lo, mas poderão assustar-se com a naturalidade realista com que o autor trata de temas como o estupro. O mito é o alimento da literatura desenhada de Thompson. Dodola, um tipo de Sheherazade moderna, salva um bebê negro de ser sacrificado por comerciantes de escravos, impacientes com seu choro. Ela foge com ele, o batiza com o nome de Zam, e o ensina histórias do Alcorão (foi alfabetizada pelo marido, um copiador de letras a quem foi vendida como esposa pelo pai, analfabeto, aos 9 anos). Ela e Zam vão morar num barco ancorado no meio do deserto. O garoto tinha 3 anos quando ela o encontrou, e 12 quando se separaram. Alfabetizada pelo marido, que foi decapitado por saqueadores, ela passou os anos contando histórias ao garoto sobre os mitos (o sacrifício de Abraão, a expulsão do Paraíso, Salomão). A gravidez e a maternidade em meio à barbárie do sexo forçado, a divisão entre negros e brancos, as regras que não se discutem, tudo isso constitui a matéria-prima do livro. A encruzilhada cultural na qual Craig Thompson se meteu poderia ser uma encrenca para qualquer ocidental. Mas ele não parece temer o confronto. Seu manifesto libertário equipara-se, em eficiência, a Persépolis, de Marjane Satrapi (mas é mais panfletário, portanto mais virulento). "A mulher deve ser separada do mundo dos homens para preservar sua pureza. Da mesma forma, ela não pode ter permissão de sair livre pelo mundo das ideias sem a devida censura. É necessário um homem para discernir aquilo que polui a mente", diz a Dodola, o censor do Sultão, encarregado de zelar pelos costumes. A obra de Thompson provoca uma curiosidade gráfica instantânea. O estilo psicodélico por vezes lembra o trabalho de Jean-Léon Gérôme e as pinturas orientalizadas do século 19, mas também fazem uma ponte com as gravuras de Kara Walker. A hierarquia do harém do Sultão e suas sessões infindáveis de sexo e tédio lembram passagens do Kama Sutra e da simbologia erótica indiana. A distância que poderia existir entre a prostituta e o eunuco é demolida em lisergia e delírio. "Dizem que o homem se inspira pelo visual, mas o que inspira a mulher é a narrativa", diz a personagem. Grafismos árabes e hebraicos entram em simbiose com narrativas do Velho Testamento, naquilo que poderia parecer um samba do árabe doido. "Hebreu e aramaico são linguagens complexas, com um inerente mistério de significado em suas interpretações", diz o autor. Mas é no cuidado dramático que a graphic novel se fortalece - no fim, é uma grande história sobre como a delicadeza persiste. Thompson cuida para que o sofrimento não danifique a alegria e a criatividade de seus personagens. Não há sentimento de vingança. Em janeiro deste ano, em entrevista, Thompson disse ao Estado acreditar que sua graphic novel pode ajudar a combater a atual islamofobia - a aversão a tudo que seja islâmico. Afirmou que submeteu o resultado a um grupo de muçulmanos e que eles o saudaram como correto. "Interagindo com amigos muçulmanos, vi que a vida deles não era tão diferente do ambiente em que cresci. São os mesmos estilos de vida, as mesmas morais e, principalmente, as mesmas histórias como fundamentos de ambas as crenças. Foi o meu ponto de acesso. O Corão contém algumas das mesmas histórias da Bíblia, mas de forma menos linear e mais poética", afirmou. Thompson não se incomoda em ser rotulado como autor para leitor jovem adulto. "Tenho em minha companhia artesãos pop como Judy Blume e mestres literários como J.D. Salinger."HABIBIAutor: Craig Thompson Editora: Companhia das Letras (672 págs., R$ 57)

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.