
10 de julho de 2010 | 00h00
No alto/ do Viaduto o louco colava pedacinhos de céu/ na camisa de força/ destruindo o horizonte a marteladas (Paisagem em 78 r.p.m. em Paranoia, 1963).
Parodiando o velho bigodudo de quem ele foi grande leitor, eu diria que Roberto Piva praticou, com rara maestria, uma "poesia a marteladas". Em algumas passagens, o efeito das imagens em apaixonada oposição que caracterizavam seus versos não era apenas o de demarcar seu campo, seu time, sua profissão de fé. Servia também para atrair adesões incondicionais e afastar os que, pior que seus inimigos, poderiam ser tachados por ele de idiotas. Contra Eliot pelo Marquês de Sade (...) contra o Jardim Europa pela Praça da República, contra o céu pela terra, contra Virgílio por Catulo, contra a lógica pela Magia (...) contra Cristo por Barrabás, contra os professores pelos pajés... (A Catedral da Desordem em Os Que Viram a Carcaça, 1962). Piva não recorria ao método paranoico-crítico só para escrever: ele também era assim para viver, escolher amigos e amantes, brigando para extrair deles, de nós, (a marteladas...?) o mesmo ágalma da inspiração que o movia.
"Só acredito em poeta experimental que leva uma vida experimental", dizia. Foi o principal desbravador de uma geração em que as liberdades individuais desviantes da norma, como o homossexualismo, o uso de drogas, a vagabundagem escancarada, a invasão performática dos espaços públicos na cidade que ele amava e odiava, eram praticados como forma de heroísmo. Mas sua excentricidade não se alinhava, como seria de se esperar, a nenhuma veia melancólica. Exuberante, sensual, prolixo, Roberto Piva só foi solitário nos momentos em que realmente não encontrou quem quisesse acompanhá-lo até o limite de suas extravagâncias místico-sensualistas: Eu não me apoio em nada/ a lua não se apoia em nada (Visão de São Paulo à Noite em Paranoia).
Quando simpatizava com alguém, quando vislumbrava através de todas as aparências em contrário um possível aliado, costumava acionar sua poderosa máquina aliciadora sem pudor e sem limites. Precisava de aliados como de amigos e de amantes. Não queria formar um partido e sim uma legião. De anjos terríveis. Em sua poesia o desejo é violento. O amor é violento. Os poemas da mais escancarada ternura amorosa são violentos. Vou moer teu cérebro, vou retalhar suas coxas imberbes & brancas. (...) vou incinerar teu coração de carne & de tuas cinzas vou fabricar a substância enlouquecida das cartas de amor. (20 Poemas com Brócolis, 1980.)
Sua sofisticação era existencial, não material. Nesse segundo aspecto, foi tão pobre que aprendeu a tirar leite das pedras. Pedia aos que tinham carro que o levassem a Jarinu, a Cananeia, à Serra da Cantareira ? lugares perto de São Paulo onde houvesse um pouco de mata para matar sua sede de experiências xamânicas, sua fome de escuridão e de mistério. Contentava-se com pouco. Sua imaginação transformava um matinho em Mairiporã na selva amazônica.
Apesar disso tudo, engana-se quem imaginar que o percurso poético de Roberto Piva fosse pautado por qualquer espontaneidade complacente. Piva não era louco. Praticava a loucura como método, mas tinha um controle absoluto de sua obra, de seu percurso literário/filosófico/místico/existencial, assim como de sua imagem pública. Uma vez fui entrevistá-lo para a Gazeta de Pinheiros: tratou-me com gentileza, mas, literalmente, conduziu sua própria entrevista do começo ao fim. Mais tarde, em 1986, eu apresentei um programa de entrevistas ao vivo para a Rádio Cultura de SP, o Radar Cultural. Convidei Renato Pompeu e Roberto Piva para um debate sobre arte e loucura. Renato, o "verdadeiro" louco, relatou sua experiência manicomial com muita sobriedade e resistiu à sedução do Piva, que tentou o tempo todo levá-lo para seu campo, do elogio à loucura. Ao fechar o programa, Renato reafirmou que a verdadeira experiência da loucura não é nada produtiva. "Eu só escrevo quando não estou louco." Piva arriscou então um gran finale ao vivo, na lata: "Pois eu prefiro enlouquecer que escrever. Só escrevo quando não estou na orgia bebendo, me drogando, transando, pirando..."
Quase perdi o emprego ? mas não o amigo ? por causa dessa bravata.
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