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Guia confuso de meditação

Odeio meditação guiada sem sininho no final. Você fica “acabou? acabou?” e aí decide espiar o celular, então o sujeito volta a falar com aquela voz de bondade suprema e você se sente meio errada, aí depois acaba de verdade, ninguém te avisa e você fica lá meio tensa sem saber se já pode voltar a nervosar.

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Por Redação
Atualização:

Fico imaginando se existe uma meditação específica para lidar com isso. Porque tem de tudo: meditação para aceitar a morte, para liberar frustrações, para o exercício da gentileza, para se conectar com o seu futuro self, para aliviar a dor da solidão, para abrir o terceiro olho, para encontrar o seu propósito, para “abraçar a energia da águia”, para dissolver-se num coração abundante, para conectar-se a um floco de neve; há meditações para se fazer sentado, deitado, andando, almoçando, correndo ou grávida.

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No aplicativo Insight Timer, há pelo menos 16 meditações guiadas em que você se imagina como uma montanha (sempre fico nervosa porque não me acho uma boa montanha) e inúmeras em que é preciso visualizar seus órgãos internos sorrindo. A mais engraçada que eu fiz, na qual meu duodeno gargalhou à beça, foi um escaneamento corporal da modalidade loving-kindness (compaixão).

Durante a prática, me pediram que eu fosse grata ao trabalho duro de meus músculos faciais, e que considerasse o sofrimento de ser um dos meus ombros. Pediram que eu enviasse apreciação à dura tarefa de digerir os alimentos e sentisse compaixão pela minha pélvis. 

Não sei se fui um bom ombro nem se agradeci o suficiente, e de novo fiquei insegura.  Um dos momentos mais tensos da meditação é quando está tudo calmo e pacífico, você deitada no chão da sala visualizando um lago cristalino num dia de sol, o ar entrando e saindo dos pulmões, o coração batendo 40 vezes por minuto, quando de repente vem um espirro. Súbito. Forte. É possível que vários ataques cardíacos fatais tenham sido registrados nesse momento. (Causa mortis: espirrou durante a meditação.) Você se desestrutura inteira e passa o resto da prática com medo de que aconteça de novo. Ainda não encontrei meditações específicas para aceitar a iminência de espirros neste mundo tão repleto de ameaças, mas deve haver.  E soluços: experimente meditar no meio de uma crise de soluços. (Um amigo meu, tradutor conceituado, tem plena convicção de que para curar soluços basta fechar os olhos e visualizar com afinco o seu próprio diafragma, concentrando-se em detalhes como formato, consistência e cor do músculo.) Há também meditações não guiadas nas quais a pessoa ouve apenas uma música de fundo e os fatídicos sininhos no início e no final, mas essas costumam me deixar ainda mais insegura de minhas habilidades meditativas. Pensando nessas dificuldades, minha amiga Paula adotou para si a prática da anarcomeditação, que consiste em nunca se sentir errada. Cansou da meditação? Pode dormir. Também é permitido abrir os olhos, coçar o nariz, deitar quando é meditação sentada e levantar no meio da prática porque sentiu cheiro de feijão. A anarcomeditação é parte do próprio mindfulness, que afinal consiste em suspender o julgamento e aceitar o momento presente.  Sugiro aos leitores que, para começar, experimentem uma anarcomeditação guiada em português de Portugal. E que façam questão de imaginar o esôfago sorrindo.  * Uma curiosidade: o Insight Timer registra em tempo real quem está meditando e por quanto tempo. A ideia é chegar ao nível de uma certa Megan, de Nova York, que num domingo recente passou 12 horas e 24 minutos meditando, ou abraçando a energia da águia e dissolvendo-se num coração abundante. É isso que eu chamo de dia de maldade.

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