Grupo Piolin voa alto com 'A Gaivota' no Festival de Curitiba

Espetáculo, baseado no texto de Chekhov, traz o frescor e a potência de uma obra-prima escrita em 1896

PUBLICIDADE

Por Beth Néspoli
Atualização:

Uma coisa é saber que uma grande peça é capaz de manter seu vigor por séculos, continuar tocando profundamente os homens. Outra coisa é constatar isso, pela emoção e pela razão, diante de uma montagem que traz para a cena novamente o frescor e a potência de uma obra-prima escrita em 1896. Assim é A Gaivota (Alguns Rascunhos), criação do grupo paraibano Piolin, com base no texto de Chekhov - um dos 21 espetáculos apresentados na mostra oficial do 17.º Festival de Curitiba, que termina no domingo, 30.   Veja também: Fotos do Festival de Teatro de Curitiba    De certa forma a montagem se impregna da trajetória desse grupo que criou um dos mais bonitos espetáculos da história do teatro brasileiro, Vau de Sarapalha, mas ficou, ainda que sem querer, enredado nesse sucesso, cujas apresentações estenderam-se por quase 20 anos. Talvez por um misto de cobrança externa e medo interno de não repetir tanta qualidade, suas demais criações não chegaram a repercutir nacionalmente.   A extensão do título, Alguns Rascunhos, nessa montagem de A Gaivota, dirigida e adaptada por Haroldo Rego, especialmente convidado, faz pensar numa espécie de estudo. Porém o espetáculo vai revelar algo diferente e bem mais interessante. Há realmente uma aproximação cuidadosa, como que receosa de não dar conta, porém esse temor é assumido pelos atores como matéria-prima de trabalho. Com esse sentimento vão abordar os personagens, revelar suas fragilidades e, por extensão, sua mais profunda humanidade. Há um trânsito delicado, feito sem estardalhaço, porém claramente codificado, entre o dramático e o épico. Ora os atores são os personagens, ora falam de si mesmos, diretamente para o público ou não. Mas o efeito que interessa é o de aproximação: os sentimentos dos primeiros são iluminados pelos dos atores e vice-versa.   Num dado momento, por exemplo, a atriz Ana Luisa Camino interrompe a cena para falar, com delicada exaltação, de seus temores - medo de não ser boa atriz, de ser criticada, de ter pesadelo, de morrer, entre tantos outros. Mas esses também são os sentimentos, naquele momento, de sua personagem Nina, a garota simples que vive no campo e terá de representar um texto que mal compreende diante do escritor famoso Trigori (Nanego Lira) e da diva Arkadna (Everaldo Pontes).   Impossível não lembrar outras experiências semelhantes de desconstrução, como as realizadas pela carioca Cia. dos Atores. Mas se há pontos de contato, o essencial está nas diferenças: a difícil simplicidade como opção, o tom de voz sempre baixo e os silêncios, muitos, grávidos de expressão, marcam essa montagem, de corajosa humildade. Quando Treplev (Thardelly Lima) joga uma gaivota morta diante de Nina (uma tira de pano enrolada), a atriz Ana Luisa reconhece ali um símbolo (algo que sua personagem Nina não poderia fazer), mas rejeita qualquer tentativa de decodificá-lo. É o trânsito entre épocas sendo também assumido em cena.   Interessante que a carga simbólica da gaivota morta por Treplev foi ampliada nessa montagem. Por exemplo, a peça simbolista que Treplev escreveu e apresenta para sua mãe na interpretação de Nina ganha a forma de uma tira de pano esticada pelos atores. Ao usá-lo depois como gaivota morta, esse elemento remete também à peça de Treplev, desfeita, rejeitada, destruída.   O teatro tem mesmo possibilidades inimagináveis. Personagens de nomes russos falando português com sotaque paraibano, uma Arkadna representada por um homem quase calvo. Elementos de distanciamento? Bem, ao fim, até marmanjos enxugavam discretamente suas lágrimas.   Por outro lado, decepcionou outro espetáculo da mostra oficial que estreou cercado de expectativas positivas: Hitchcock Blonde, do grupo curitibano Vigor Mortis, dirigido por Paulo Biscaia. Fica a impressão de que a escolha do texto se deu pelas suas possibilidades formais. Quem viu Morgue Story ou Graphic, que cumpriu temporada recente em São Paulo, sabe que esse diretor trabalha muito bem com recursos como projeções e mescla de linguagens: quadrinhos, grafite, cinema e teatro.   O texto escolhido, de Terry Johnson, alterna dois tempos a partir de uma trama que envolve a relação de uma aluna com seu professor de cinema que, supostamente, encontra latas que contém um filme de Hitchcock que jamais teria chegado às telas. Juntos, eles tentam recuperar a fita. Mescla de cinema e teatro, tramas que se alternam? Perfeito material para esse grupo.   Há momentos de grande beleza formal no espetáculo como no jantar a dois de Hitchcock com uma de suas loiras fatais. Mas a trama acaba resultando confusa, parece faltar um objetivo na realização da peça, os sentidos se diluem. Em alguns momentos a discussão entre aluna e professor resvala na trivialidade ou na pieguice. Em outros, em que a "senilidade" do professor é tema, os diálogos soam inverossímeis. Como se trata de uma estréia, juízos assim podem perder o valor em breve, pois acertos de temporada talvez mudem radicalmente a montagem.   A repórter viajou a convite da organização do festival

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.