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Grupo Lume se reinventa com 'Os Bem- Intencionados'

Companhia de teatro levou 12 anos construindo os personagens do musical sobre artistas amadores

Por MARIA EUGÊNIA DE MENEZES -O Estado de S.Paulo
Atualização:

É difícil abandonar a máscara. Porque, por vezes, ela se cola de tal maneira ao rosto que a carrega que já não se sabe mais qual é a verdadeira face. Será que há uma face que seja a verdadeira? Para fazer Os Bem-Intencionados, o grupo Lume levou 12 anos construindo seus personagens. São figuras de traços histriônicos, escondidas por trás de suas perucas, apliques e enchimentos. Curiosamente, porém, é por meio desses seres travestidos que a notável companhia de Campinas consegue despir-se das amarras de sua técnica. Depois de 27 anos de trajetória, lança-se por território inexplorado. O trabalho corporal, que sempre teve primazia nas investigações do Lume, foi momentaneamente abandonado. "A peça surge de uma inquietação com o nosso próprio trabalho. Do que a gente precisa para não ficar preso dentro de moldes?", reflete o ator Carlos Simioni. "Em todos esses anos, nunca havia me sentido tão desprotegido em cena." A encenadora e dramaturga mineira Grace Passô, conhecida por seu trabalho à frente do grupo Espanca!, assumiu o leme do novo espetáculo. Nele, os personagens merecem mais relevo que os aspectos físicos. "Porque toda a técnica do Lume é só um apoio para que algo muito maior aconteça", acredita a diretora. O enredo - que capta os integrantes de uma banda e suas inquietações - serve de espelho para que a trupe se auto examine. Em um cenário que tem feições de salão de baile, o público se acomoda em mesas. Verá os percalços de sete aspirantes a músicos. Pessoas que, durante o dia, levam uma vida comum. Possuem seus empregos e problemas. Mas que, à noite, reúnem-se cheios de boas intenções e acalentados pelo sonho de um dia fazer sucesso. A direção musical de Marcelo Onofri traz piano, percussão e acordeão para acompanhar os atores no repertório: de Nina Simone a Fabio Jr. Ao falar sobre o universo desse fictício conjunto musical, o Lume se debruça sobre certa inocência perdida. "É uma filosofia muito simples para falar sobre a arte, sobre esse impulso primeiro de criação, que talvez seja o mesmo, não importa a obra a ser criada", considera a atriz Ana Cristina Colla. "É possível que o que nos move a criar seja alguma coisa muito parecida com o que leva alguém a gravar um CD em casa para vender na rodoviária", complementa a diretora. A história a ser contada não tem um andamento linear. Intercala passado e presente. Oscila entre o cotidiano mais prosaico e o delírio. Existe o trauma do abuso sexual sofrido na infância. Mas também risíveis técnicas de sedução feminina que não funcionam. Rememora-se o dia em que um homem teve um derrame sozinho em casa, mas ninguém o ouviu gritar porque seu vizinho escutava Frank Sinatra no último volume. Acompanham-se as intermitentes crises de dependência química de uma mulher. Um desfile de criaturas solitárias, mas esperançosas. Na base do processo de concepção desses personagens está a clássica figura do bufão. O cômico marginal, que tem o corpo marcado pela deformidade, pelo exagero. "Mas, em um mundo em que todos estão em constante transformação para manter a juventude, ser bufão tornou-se a regra, não a exceção", ressalva a intérprete Naomi Silman. Considerada sob essa perspectiva, a montagem parece surgir como um percurso de desnudamento. De uma nudez que vai se revelar em muitas camadas. São os personagens que livram-se de sua segurança inicial para abraçar uma vulnerabilidade absoluta. São os atores, que deixam sua zona de conforto. Rasgam máscaras e fantasias para surgir demasiado humanos.

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