Rodrigo Pederneiras, coreógrafo do Grupo Corpo, uma das mais importantes companhias de dança do Brasil, com sede em Belo Horizonte, realiza um sonho pessoal com a estréia mundial de Lecuona, hoje em São Paulo, no Teatro Alfa. Ele não se cansa de contar a história que está por trás da coreografia. Há muitos anos ganhou uma fita cassete com peças para piano-solo e tristes canções de amor do compositor cubano Ernesto Lecuona, decidiu que um dia iria fazer um balé com aquela trilha. Os anos se passaram, a fita se foi e nada de encontrar gravações do cubano. "Eu já estava desistindo, quando há dois anos decidi vasculhar em uma loja de discos em San Francisco, durante uma turnê da companhia, e encontrei um único CD", diz Rodrigo. Eufórico, mostrou o achado para o artista plástico Fernando Velloso, responsável entre outras coisas pelos contatos internacionais do Grupo Corpo, que enlouqueceu. Juntos convenceram Paulo Pederneiras, o diretor da cia., a ouvir o CD. Decidiram então montar a coreografia, uma novidade para o grupo, uma vez que os Pederneiras só fazem espetáculos a partir de composições exclusivas. "As músicas são fortes, arrebatadoras, com letras apaixonadas e derramadas, muito latinas. O CD estava pronto para ser coreografado, com 13 músicas, 12 canções repletas de amores exagerados, ciúmes, vinganças e paixões e no final uma bela valsa." A coreografia traz outra novidade: desta vez serão 12 pas-de-deux e o grupo só será reunido na valsa, última música. "Como são canções de amor, optei pelos casais em cena. Os bailarinos opinaram, cada pas-de-deux saiu de uma forma, peças únicas, com o jeito de cada dupla. Eu fiz todas as marcações, mas os intérpretes tiveram um papel fundamental neste trabalho." Ainda segundo o coreógrafo, as peças também são moldadas pelas canções, adquirindo um caráter dramático e algumas vezes cômico. O figurino é um capítulo a parte. Assinados pela arquiteta e figurinista Freuza Zechmeister são ousados, os homens usam preto e sapatos sociais de verniz, já as mulheres desfilam vaporosos vestidos curtos, com fendas laterais ou decotes e calçam saltos altos, de 4,5 cm a 9 cm, uma ousadia. "Francamente nem havia pensado no salto, fiz a coreografia e Freuza ao definir o figurino fez a sugestão. Nunca na companhia as bailarinas haviam usado saltos tão altos, mas achei que ficou perfeito, praticamente não alterei os gestos e as meninas se adaptaram durante os ensaios", observa Rodrigo. "Realizei um sonho, com roupas feitas sob medida para cada bailarino", afirma Freuza. "Como conheço muito bem todos eles, desenhei a roupa pensando na personalidade de cada um, até mesmo na escolha das cores". Freuza lembra quando dançava a canção Siboney de Lecuona nos bailes do interior. "Eu fiz esse figurino com peças que eu gostaria de usar naquela época ." Para fechar o programa, como é de praxe eles dançam uma coreografia do repertório. Desta vez, a escolhida foi Nazareth, de 1993. As música é assinada por José Miguel Wisnik, inspirada na obra de Ernesto Nazareth. O Grupo Corpo tem patrocínio da Petrobrás. Karla DunderAS MELODIAS DOS MALES DO AMOR Falar em Ernesto Lecuona (1895-1963) talvez não signifique muito hoje em dia. No entanto, ele é compositor de algumas das canções cubanas mais conhecidas do século 20, como Siboney, Maria la O, Celos e Mi Corazón se Fue. Essas peças ajudaram a tornar a música de Cuba conhecida internacionalmente, em especial na Europa, em países como Espanha e França e também na América Latina, Brasil incluído. Apesar disso, a música de Lecuona, em geral, não se associa ao "exotique" cubano, quer dizer, à música sensual, ritmada, a música de cabaré da Cuba pré-revolucionária. Lecuona tende a ser visto como mais romântico, roça no melodramático com suas melodias tristes, inspiradíssimas, e letras que falam, quase invariavelmente, dos males do amor: abandonos, seduções, desenganos. É o tom da música latina dos anos 30 e 40. Há um segredo, porém: um sal, um tempero diferente na música de Lecuona. Ele mistura a tradição romântica européia, com suas danças e tonadas espanholas, com a ginga dos bailes negros e dos cantos de origem africanas. Essa "cubanidad", entranhada na partitura, dá o diferencial à sua musica. Mas, de certa forma, o ouvinte brasileiro atual terá de prestar atenção para identificar o traço "crioulo" no repertório de Lecuona. Depois do sucesso do Buena Vista (através do disco produzido por Ry Cooder, e também do filme de Wim Wenders) tendemos, mais uma vez, a associar a música cubana ao ritmo envolvente, à sensualidade, ao calor caribenho do som. É mesmo uma bela tradição, representada pela música de Cachao e Cachaíto Lopez, Rubem González, Gonçalo Rubalcaba, Bebe e Chucho Valdés, Paquito d´Rivera, Celia Cruz e tantos outros, famosos por levar platéias ao delírio com aquele ritmo incomparável. Passamos a esquecer que a música romântica também está presente no repertório de Omara Portuondo e Ibrahim Ferrer, ambos do Buena Vista. E então voltamos a Lecuona, que se de fato foi um ícone na chamada música latina de dor-de-cotovelo, também primou pela diversidade de interesses musicais. Compôs danças cubanas e afro-cubanas para piano, guajiras, congas, guarachas e habaneras, incorporando ao repertório do seu instrumento toda a diversidade rítmica da ilha. Em seu interessante livro La Musica Cubana, Alejo Carpentier diz que seu país, de pobre tradição aborígine, encontrou na música a forma de expressão privilegiada que lhe valeu difusão mundial ao longo do século 20. Por um lado, o país, de colonização espanhola, manteve contato estreito com o que se fazia na Europa. Por outro, a miscigenação sonora com os africanos trazidos como escravos produziu música própria de grande vigor. Inclua-se aí a proximidade geográfica com o sul dos Estados Unidos, berço da grande música negra americana, região que, segundo palavras de García Márquez, faria parte do Caribe e não da América do Norte. Nesse ponto de encontro de influências nasceu essa que é uma das mais vitais e diversificadas tradições musicais do planeta, ao lado da norte-americana e da brasileira. Curiosamente, como assinala Carpentier, a historiografia conservadora cubana dos primeiros anos pós a independência, procurava negar a influência do componente africano na música do país. Desejava uma Cuba europeizada e branca, livre do elemento africano, já liberto, e "identificado pelas classes altas como "um lastro de barbárie que apenas podia tolerar-se a título de mal inevitável", nas palavras de Carpentier. No entanto, a presença dos negros no ambiente musical cubano era evidente até mesmo em termos quantitativos. Proporcionalmente, o número de negros envolvidos com a música era quatro vezes superior à dos brancos, na Cuba do início do século 20. A formação européia, turbinada pelo substrato afro da música cubana, resulta no blend incomparável de Lecuona. Para tirar a prova, basta ouvir a versão de Caetano Veloso para Maria la O no disco Fina Estampa que, lançado anos atrás, esteve à venda em toda a América hispânica. Integração latina é isso aí. Luiz Zanin Oricchio