Grotowski volta à cena brasileira

Criador do 'teatro pobre', o diretor polonês, morto em 1999, ganha uma biblioteca só para a sua obra

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Por Redação
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A despeito de ter resistido à classificação de herdeiro de Antonin Artaud (1896-1948), o diretor polonês Jerzy Grotowski (1933-1999) é hoje tão reverenciado quanto o criador francês do "teatro da crueldade". Grotowski, a exemplo de Artaud, acreditava na função terapêutica do teatro. É o encenador que o editor Edson Filho, da É Realizações, ex-ator, escolheu para homenagear com uma biblioteca inteira dedicada a títulos sobre o homem que quebrou a barreira entre palco e plateia, ao defender a aproximação entre atores e público e condenar a transformação do teatro em espetáculo para entretenimento das massas.A Biblioteca Grotowski (leia nesta página) ganha só este ano quatro títulos, assinados, inclusive, por profissionais de teatro que trabalharam com Grotowski, sendo o primeiro deles Trabalho de Voz e Corpo de Zygmunt Molik. Simultaneamente, a editora Perspectiva coloca nas livrarias um livro fundamental sobre o método de preparação do ator desenvolvido pelo diretor polonês, Trabalhar com Grotowski, escrito por um de seus mais próximos colaboradores, o ator e diretor norte-americano Thomas Richards.Grotowski nomeou-o herdeiro dos direitos sobre sua obra. Richards dirige, desde 1999, o Workcenter que leva o nome dos dois, em Pontedera, Itália, um centro de formação de atores. A Perspectiva tem nada menos do que cinco livros relacionados a Grotowski e sua herança, entre os quais destaca-se O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski (1959-1969), volume organizado pelo dramaturgo e crítico de teatro polonês Ludwik Flaszen e Carla Pollastrelli, dois outros colaboradores do diretor. Flaszen, radicado na França, ainda está bastante ativo. Aos 82 anos, ministrou, no ano passado, um workshop em Goiânia. Foi ele o responsável pelo convite que levou Grotowski a se fixar em Opole, conhecida por ser vizinha a Auschwitz, após assistir, em 1958, à montagem de estreia do diretor, Deuses da Chuva. Em Opole começou o laboratório experimental e o teatro radical de Grotowski, inicialmente batizado de "teatro pobre" por dispensar todos os penduricalhos que o convencional teatro de espetáculo utiliza (cenários suntuosos, maquiagem exagerada, alta tecnologia e representação caricata).Foi com a peça Akropolis (1962), de Stanislaw Wyspianski, que o diretor colocou em prática sua teoria sobre o teatro pobre, convidando o público a se integrar ao drama dos prisioneiros de um campo de concentração, todos confinados num crematório. A peça foi filmada com narração de outro grande diretor de teatro, o inglês Peter Brook (Marat Sade), que ajudou a divulgar o "teatro laboratório" e as ideias de Grotowski além da fronteira polonesa.Zygmunt Molik foi o ator principal da companhia de Grotowski. Nela passou 25 anos, participando das principais montagens do diretor, entre elas O Príncipe Constante (1968) e Apocalypsis cum Figuris (1979). O livro da Editora É traz longas conversas entre Molik e Giuliano Campo, professor e diretor de teatro italiano. É uma porta de entrada generosa para a obra de Grotowski, incorporando num DVD (de 130 minutos) filmes recentes que mostram o método do trabalho de voz e corpo de Molik (Dyrygent, de 2006, e O Alfabeto do Corpo, de 2009).O trabalho de Molik não é simplesmente o treino da capacidade vocal do ator, mas uma tentativa de encontrar a própria voz, como um xamã que invoca um espírito e é tomado por ele. Grotowski costumava desenvolver workshops com os atores e foi imitado por alguns aventureiros que copiaram desajeitadamente seu método, levando outros colegas a entender mal o que o diretor defendia como "ações físicas". Seu herdeiro intelectual, Thomas Richards, confirma no livro que a pesquisa de Grotowski tem sido interpretada de modo equivocado como algo "selvagem e sem estrutura, em que as pessoas se jogam no chão, gritam à beça e têm experiências pseudocatárticas".Para que o teatro não competisse com o cinema de espetáculo, segundo Grotowski, os atores deveriam praticar o método das "ações físicas" desenvolvido pelo polonês com base nas ideias do diretor russo Stanislavski (1863-1938). Stanislavski criou um método de preparação do ator em que a análise ativa da dramaturgia e o uso da memória emotiva levam ao entendimento pleno da obra. Grotowski seguiu adiante, estimulando os atores ao desbloqueio físico e a tentar novas experiências sensoriais. Não só é necessária a memória, mas especialmente o corpo, para se fazer teatro."Vivemos numa época em que nossa vida interior é dominada pela mente discursiva, que divide, reparte, etiqueta e empacota o mundo como se ele pudesse ser entendido", observa Thomas Richards, repetindo o primeiro dos dez mandamentos da "Declaração de Princípios" de Grotowski - que convida o ator a se tornar o interlocutor ativo do espectador, descartando interpretações falsas e abraçando a improvisação genuína.Richards admite em seu livro que foi um desastre seu contato inicial com Grotowski, entendendo mal sua proposta de "teatro laboratório", particularmente o conceito de "máscaras faciais" presente em peças como Akropolis - nela, os atores tentavam transmitir ao público a situação dos judeus em Auschwitz, em especial a dos que eram mantidos no campo de concentração até o extermínio. Como compreender o incompreensível? Por meio dessas máscaras faciais que traduzem as marcas de uma experiência existencial intransferível e esculpem o rosto da tragédia.Stanislavski chamou de monólogo interior o que Grotowski chamaria de lógica interior. Richards acreditava poder retorcer o rosto até construir essa máscara facial. Grotowski riu muito diante das acrobacias do futuro assistente ao exercitar os músculos faciais, mostrando que uma "atividade" física não é exatamente uma "ação física", que exige a busca interior da memória exata do gesto para ajudar a compor o personagem.Molik conta no livro que Grotowski tinha duas frases para se comunicar com os atores: "Acredito em você" ou "Não acredito em você". Certa vez, o ator Zbigniew Cynkutis (1938-1987), relata Molik, quase matou o diretor com uma cadeirada após ouvir por duas horas que Grotowski não acreditava nele. Quando explodiu como um touro enfurecido, recebeu a aprovação do mestre. "Agora acredito em você", disse Grotowski. / A.G.F

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