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Gravurista Samico, morto aos 85, reinventou uma tradição

Pernambucano foi premiado na Bienal de Veneza e tem duas obras no MoMA de Nova York

Por Jotabê Medeiros
Atualização:

Morreu nesta segunda-feira, 25, no Recife, aos 85 anos, o artista plástico Gilvan Samico, um dos maiores gravuristas brasileiros e cuja reputação se internacionalizou a partir dos anos 1970. Ele sofria de câncer na bexiga. O MoMA de Nova York possui duas obras de Samico e ele foi premiado na Bienal de Veneza, da qual participou duas vezes.

Seu ritmo de produção contrastava com o do resto do mundo: costumava fazer apenas uma gravura por ano. Vivia no próprio ateliê com a mulher, Célida, havia décadas, em um sobrado na frente do mar de Olinda, ao lado do Mosteiro de São Bento, onde costumava estacionar seu carro “sorrateiramente”, brincava. Seu corpo seria cremado na noite de ontem.

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Ex-aluno de Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi, Samico viveu nos anos 1960 em Barcelona e Versalhes, com bolsas artísticas. Depois, se tornaria figura exponencial do Movimento Armorial, que tinha alistados artistas como Antonio Madureira e Francisco Brennand e era capitaneado pelo escritor Ariano Suassuna. O Armorial, a partir de 1970, preconizou uma fusão entre a cultura popular e referências eruditas. Suassuna o procurou com a gravura de cordel em mente. “Era uma boa ideia, mas a gravura de cordel já existia, já estava cristalizada e não tinha sentido copiá-la. Então eu mergulhei no texto, pinçando dali os elementos que mais me tocavam”, ele conta. Desenhou também capas de discos do Quinteto Armorial. Trabalhou dessa forma até 1967, e a partir daí desvencilhou-se do cordel como referência primordial.

Samico não gostava muito de explicar seu trabalho. “É porque não é o meu papel. Não é essencial que tenha uma explicação, é uma obra visual. Verbalizar o trabalho de arte é coisa para crítico, que eles têm o dom da palavra. Às vezes, usam isso para descobrir nuances de que o próprio artista não se dá conta. O ato de criar às vezes é um transbordamento”, disse ao Estado em entrevista em 2008.

 “É autor de uma obra de extrema qualidade, com característica singular. É um dos mais importantes artistas brasileiros da segunda metade do século 20”, sentenciou Marcelo Araújo, secretário de Cultura de São Paulo e ex-diretor da Pinacoteca do Estado. “Tenho grande apreço por Goeldi e por Lívio Abramo, mas Samico superou seus mestres. Eu o considero o maior gravador de todos os tempos. Seria grande em qualquer país do mundo”, disse o escritor e dramaturgo Ariano Suassuna.

Não tinha galerista, era a nora que fazia o papel de intermediar a comercialização dos exemplares que vendia anualmente. As telas geralmente não nasciam com nome. “É que nem menino, o nome a gente põe depois.” De formação complexa e refinada, ele sabia que sua arte não era popular. “É uma arte de caráter erudito que se vale de elementos populares. Não é uma arte erudita, veja bem, é arte de caráter erudito”, explicou. “Faço uma gravura que pode ser considerada moderna, não é uma gravura arcaica. Mas tem essa coisa de olhar para trás, para o passado.”

O uso de símbolos de diversas culturas e crenças foi aumentando ao longo de sua produção, incorporando signos religiosos e lendas indígenas. Bonachão, gozador, ele mesmo se encarregava de tripudiar sobre alguns de seus deslizes. “A gravura Francisco e o Lobo de Mantua tem nome errado. O lobo é de Gúbia, nunca houve Mantua.” O nome Samico, explicava, podia ter origem judaica, mas também podia ser corruptela de uma expressão portuguesa (“Essa mica”).

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