"Gota d´Água" de Villela conserva contundência

Montagem do musical escrito por Chico Buarque e Paulo Pontes, em cartaz no TBC, continua a valer como ícone da resistência, mais de 25 anos depois de sua estréia

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Por Agencia Estado
Atualização:

Em meados da década de 1970-80, no auge do regime militar, numa fase de intensa repressão às liberdades civis e aos direitos do indivíduo, Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes (1940-1976) ousaram escrever o musical Gota d´Água. Apesar da clara metáfora contida na peça, contrária aos fardados detentores do poder, talvez por não fazer alusão direta à política brasileira ela foi surpreendentemente aprovada pela castradora Censura Federal. Dirigida por Gianni Ratto, com Bibi Ferreira à frente do elenco, Gota d´Água estreou em dezembro de 1975, no Rio. E fez história. Era uma crua adaptação de Medéia, tragédia grega de Eurípides, transposta para um conjunto habitacional miserável, na periferia de uma grande cidade brasileira. Joana, a protagonista, abandonada pelo marido, Jasão - sambista que a troca por Alma, filha de Creonte, dono do conjunto habitacional em que moram -, envenena os filhos e suicida-se. Permeado por belas canções, o drama entusiasmou espectadores que começavam a mostrar-se avessos ao governo militar e, em um tempo de liberdades cerceadas, buscavam canais adequados para expressar sua insatisfação. Entre 1960 e 1980 o teatro foi um dos canais dessa discordância, que tomou corpo em obras de Plínio Marcos, Dias Gomes, Consuelo de Castro, etc. Gota d´Água foi um dos mais destacados elos dessa corrente, que inclui vários musicais notáveis, como Opinião e Zumbi. Revista um quarto de século depois, a obra de Paulo Pontes e Chico Buarque conserva a mesma contundência da estréia. O mérito não está muito no texto, que é apaixonado, mas esquemático, como ocorre muito com musicais. A atualidade deriva de sua qualidade humana, da observação de uma tragédia pessoal que continua a valer como ícone de resistência ao eterno sistema de exclusão, à estrutura de castas e privilégios que mantém multidões de excluídos à margem da civilização. Gota d´Água permanece atual pelas mesmas razões que mantêm atuais as obras de Plínio Marcos, dramaturgo que afirmava esperar ansiosamente pelo dia no qual suas violentas peças seriam superadas por uma sociedade pilotada pela justiça social. Gabriel Villela, autor da nova montagem de Gota d´Água - em cartaz no TBC depois de quatro semanas de temporada no Tom Brasil -, agiu no estilo hiperbólico que é o seu. Em parceria com Leopoldo Pacheco criou figurinos cuja referência é uma Grécia tão estilizada que se torna carnavalesca. Por meio da cenografia de J.C. Serroni, transportou a áspera metáfora de Pontes e Holanda para Brasília. Sob os arcos de um dilapidado Palácio da Alvorada dá-se o embate entre Joana, Jasão e Creonte. Seguindo a linha estabelecida em suas montagens prévias de musicais de Chico Buarque, Villela somou à partitura de Gota d´Água canções que não figuravam ali originalmente. O espetáculo obedece a um desenho ritualístico, traduzido em movimentos grupais elaborados, rebuscados. O cenário branco de Serroni contrasta com os coloridíssimos figurinos de Villela e Pacheco, que a par da inspiração grega recorrem a motivos orientais e afro-brasileiros, além de recorrerem a amplo uso de máscaras. Toda essa teatralidade sufoca em parte a trama combativa de Pontes e Hollanda. A história fragmenta-se em meio ao excesso dos cantos, danças, rituais. Os movimentos do conjunto ganham preponderância em relação ao entrecho. O espetáculo articula-se mais como uma aventura visual e sensorial que como uma denúncia social. E o espectador pode perguntar-se pelo sentido de uma remontagem de Gota d´Água que dilui essa, talvez a principal característica da obra. Há indignação no espetáculo, mas ela soa tão exótica quanto os fantásticos figurinos e as máscaras douradas. Como sempre, Villela, diretor enérgico, dono de um estilo marcante, causa polêmica. Mas seu temperamento forte e sua exuberância têm um público fiel, que admira e aplaude suas criações. Prova disso é a platéia que aclamou Gota d´Água em pé, no Tom Brasil. Do numeroso elenco, Villela extraiu interpretações extrovertidas, musculares. No jogo cênico, a exterioridade, a ampliação expressionista da realidade estão presentes em todos os atores, dos protagonistas aos integrantes do coro. Cleide Queiroz, como Joana, dá o tom, construindo uma personagem exacerbada, arquejante, sempre no limite do fôlego. Veterana e competente, ela não hesitou em traçar o que lhe foi pedido: uma Joana excessiva, feroz, boquiaberta, de olhos sempre esbugalhados. O Jasão de Jorge Emil contraria a regra geral. O ator mineiro evitou o estereótipo do malandro mau-caráter, mas deu uma suavidade sorridente ao papel que destoa estranhamente do tom exasperado dos outros atores. Embora estejam em cartaz ao mesmo tempo e narrem a mesma fábula, não se pode comparar a Gota d´Água de Villela com a Medéia de Antunes Filho (em cena no Sesc Belenzinho). Equivaleria a comparar a síntese, a contundência e o lirismo de um haicai com a reiteração, o brilho e a expansividade de um desfile de escola de samba. Os dois estilos têm seu público, decerto formado por sensibilidades distintas, ou melhor, antípodas. Gota d´Água. De Chico Buarque e Paulo Pontes. Direção Gabriel Villela. Duração: 120 minutos. Quinta a sábado, às 21 horas; domingo, às 20 horas. R$ 15,00 (quinta), 20 00 (sexta e domingo) e R$ 25,00 (sábado). TBC - Sala TBC. Rua Major Diogo, 315, em São Paulo, tel. (11) 3115-4622. Até 23/12. Patrocínio: Hudson, Schahim, TAM, Racional e Consórcio Remaza.

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