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Gilberto Gil, um criador afinado com a geração no poder

Sua trajetória criativa não é diferente da trajetória política dos ex-guerrilheiros ou dos intelectuais que lutaram contra a ditadura e pela redemocratização do Brasil

Por Agencia Estado
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Como era da atmosfera da época, primeira metade dos anos 60, o início da criação musical de Gilberto Passos Gil Moreira, administrador de empresas empregado em São Paulo, da Gessy-Lever, tinha forte conteúdo político. Foram, primeiro, músicas para cinema: Viramundo (filme homônimo de Geraldo Sarno), Roda (filme do mesmo nome de Sérgio Moniz). Canções fortes ("Ainda viro esse mundo/ Em festa, trabalho e pão", Viramundo), desafiadoras ("Quero ver quem vai ficar/ Quero ver quem vai sair", Roda), denunciadoras ("Se existe Jesus no firmamento/ Cá na Terra isso tem de se acabar", Procissão), conclamatórias ("O Rancho do Novo Dia/ E o Cordão da Liberdade/ E o Bloco da Mocidade/ Vão sair no carnaval/ É preciso ir às ruas/ Esperar pela passagem/ É preciso ter coragem e aplaudir o pessoal", Ensaio Geral). O fim dos anos 60 marcou, internacionalmente, a tendência de abandonar a militância política explícita em troca do protesto comportamental. Na obra de Gilberto Gil, ao lado da de Caetano Veloso, traduziu-se essa mudança no movimento tropicalista - uma proposta de aproximação de díspares, revisão de preceitos estéticos. O tropicalismo pôs na mesma sintonia a guitarra elétrica do rock e a para-opereta mórbida de Vicente Celestino. Caetano Veloso compôs, na época, o manifesto É Proibido Proibir. E o fez por sugestão do então empresário de ambos, Guilherme Araújo, que vira a frase pintada nos muros de Paris, em 68. Síntese do antiideário tropicalista vinha no baião Geléia Geral, de Gil e Torquato Neto: "É a mesma dança na sala/ (...) Não vê no meio da sala/ As relíquias do Brasil? Doce mulata malvada/ Um elepê de Sinatra/ Maracujá/ Mês de abril/ Santo barroco baiano/ Superpoder de paisano/ Formiplac e céu de anil" - para concluir assim: "É a mesma coisa, meu boi." O protesto contra o exílio veio em forma de saudação: Aquele Abraço. O embarque no Expresso 2222 ("Que parte direto de Bonsucesso/ Pra depois") levava para fora de um Brasil oficial que não gostava dele, Gilberto Gil. A adesão ao pop, nos anos 70, entendida por alguns como desencanto alienado, era, para ele, forma de lançar olhar abrangente para o mundo já em processo de globalização. Líder e conciliador, por natureza, Gil tratou de pôr sua colher de pau no tacho da cultura da diáspora negra, fosse olhando para o interior ou para a periferia da cidade grande (Refazenda e Refavela - ele jamais teve pejo dos trocadilhos), fosse abrigando no mesmo cafofo o blues do Mississippi e o santo da umbanda (Chuckberry Fields Forever). Sem abandonar o desfile anual dos tradicionalistas Filhos de Gandhi, de Salvador, que ainda hoje não admitem mulheres em seus quadros, formou seu próprio trio elétrico, que sai no carnaval baiano, e pôs antena parabólica no terreiro da capoeira. Sua trajetória criativa não é diferente da trajetória política dos ex-guerrilheiros ou dos intelectuais que lutaram contra a ditadura e pela redemocratização do Brasil. É aquela turma que está hoje no poder. Gil é, a seu modo, um honrado representante dela. Por que, então, tanta polêmica?

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