Garrone e a sua fábula sobre o espetáculo do poder

Diretor explica como a abertura de Reality é decisiva na criação de um clima que deve induzir o público a pensar

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Filho de um importante crítico de teatro, Nico Garrone, Matteo diz que se acostumou a acompanhar a cena italiana - tanto a alternativa quanto o teatrão. Ele já conhecia o grupo que Aniello Arena integra num cárcere de Volterra. Conseguiu que ele fosse liberado para fazer o filme, regressando toda noite à prisão. Não deixa de ser a repetição daquilo que os Irmãos Taviani mostraram em seu admirável César Deve Morrer. Matteo Garrone segue falando de seu novo longa, que estreia hoje.Como você conseguiu que Aniello Arena fizesse o papel de Luciano?Achei que ele tinha a dimensão do personagem e que o entenderia melhor que ninguém. Não pensei num golpe de publicidade, não faz o meu feitio. Talvez, se tivesse tentado colocá-lo em Gomorra, os magistrados não deixassem, porque era, afinal, um filme sobre atividades criminosas e ele é um condenado que cumpre pena. Mas o caso de Reality era especial e a Justiça concedeu a liberação. Foi muito interessante ver como ele se integrou com toda a equipe no set. Em dois dias, todo mundo já se havia esquecido de quem ele era e só importava o brilhante trabalho do ator.Você começa o filme de forma espetacular, com a câmera que segue uma carruagem pelas ruas de Nápoles. É uma imagem barroca, inusitada. Cria um estranhamento. Era o que queria?Gomorra, que adaptei do livro de Roberto Saviano, era um filme realista. Mas não queria repetir a forma em Reality, até porque, para mim, esse filme é uma fábula moderna. A fábula, por definição, não é realista. Usa a ficção alegórica para propor uma verdade ou reflexão de ordem moral, com intervenções de pessoas e animais. Achei que seria uma forma de colocar o público no tom começar o filme com uma carruagem, e uma princesa que está se casando. A câmera aproxima-se cada vez mais até entrar no plano dessa outra realidade. E quando Luciano, o protagonista, começa a delirar e perde a noção do que seja essa realidade, crio outra cena que, para mim, é o complemento da abertura - o ângulo do inseto, para mostrar o delírio do herói, que é um anti-herói. Nada nesse filme é produto do acaso. Reality pode ter uma dose de improvisação, mas foi muito pensado, desde o roteiro até a realização.Seus filmes são muito críticos da realidade italiana. Sua estética é política?Depende do que você entende por política. Não estou expressando nenhuma militância partidária. E nem me coloco numa posição de superioridade em relação a Luciano. Ele possui seus sonhos, como eu possuo os meus. Lutamos, em diferentes níveis, contra um sistema que é hoje, basicamente, consumista e vende sonhos possíveis de se comprar. A felicidade, hoje, para a maioria das pessoas, é representada por bens de consumo. Acho muito interessante como, em pleno delírio, tentando convencer a direção da TV que é um bom homem, Luciano se desprende, franciscanamente, de seus bens. Aniello é perfeito nessas cenas. Molto bravo.A maneira mais fácil de se ver Reality é como um ataque à TV, que virou o símbolo do poder de Silvio Berlusconi na Itália. Era o que você queria?Você pergunta e responde. Pode-se ver o filme dessa maneira, mas ela é reducionista, empobrecedora. Reality não é sobre a TV nem Berlusconi nem sobre o Gran Fratello. É sobre a família e sua desintegração. E é sobre algo muito atual e complexo. Existem estudos que discutem como, na sociedade da imagem, o próprio Estado erige uma espécie de espetáculo do poder. Reality é sobre a sociedade do espetáculo. E o que o meu filme tenta mostrar é um pouco de compaixão por nossa pobre humanidade, na qual me incluo.

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