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Garimpando em Paris

Por HUMBERTO WERNECK
Atualização:

Excelente ideia essa que tive (é, às vezes me acontece) de botar na bagagem meu exemplar de E Foram Todos para Paris, do Sérgio Augusto, colega aqui nas páginas do Estadão cuja prosa sábia e saborosa venho degustando desde os tempos do Pasquim. Suponho que você, não menos capaz de ideias felizes, já conhece esse "guia de viagem nas pegadas de Hemingway, Fitzgerald & Cia.", que a Casa da Palavra poderia lançar (quase ia escrevendo "disponibilizar") também em versão eletrônica. Ainda bem que o voluminho (126 páginas), farta e belamente ilustrado, se acomoda num bolso de casaco. Tendo morado alguns anos em Paris, eu tinha a pretensão de achar que conhecia bem as pegadas de Hemingway e Fitzgerald na cidade onde viveram na década de 1920 - e eis que vem o Sérgio escancarar e mobiliar a minha ignorância, especializada também, pelo visto, em referências lítero-turísticas de Paris. Marinheiro de terceira viagem neste hotel da rue Delambre, em Montparnasse, eu não sabia, por exemplo, que no n.º 4 funcionou uma legendária editora e livraria, The Black Manikin, ali instalada em 1924 por Edward Titus, marido da Helena Rubinstein, sim, aquela dos cosméticos. E que no meu café predileto, o Sélect, no 99 do boulevard du Montparnasse, a Isadora Duncan, em 1927, pouco antes de morrer, encheu de "sopapos e pontapés" um marmanjo, o jornalista americano Floyd Gibbons, por haver este defendido em sua presença a condenação à morte de Sacco e Vanzetti.Além de atenuar a minha desinformação, a leitura do Sérgio Augusto veio açular meus brios de ex-morador do 55bis do boulevard du Montparnasse (seis andares sem elevador, 99 degraus só encaráveis na juventude), impelindo-me ao garimpo de relíquias que o livro não tivesse arrolado. Consciente de minhas limitações até físicas, não me arrisquei a uma cata na cidade inteira, como fez o Sérgio, limitando-me a palmilhar Montparnasse - mas em compensação abrindo para outra fauna além de "Hemingway, Fitzgerald & Cia.". Sem deixar, porém, de ir verificar in loco que o restaurante La Nègre de Toulouse, no 159 do boulevard du Montparnasse, no qual Hemingway se empapuçava de cassoulet e vinho de Cahors, se acha hoje convertido numa sem-graceza de nome La Padova. Ou de peregrinar pela rue Notre Dame des Champs, onde, no primeiro andar do 113, o escritor e sua primeira mulher, Hadley, pousaram de 1924 até sua separação, em 1926. Na mesma rua, morador no 70bis entre 1920 e 1924, o poeta Ezra Pound dava folga às musas e, com madeira de caixotes, fazia estantes para a livraria Shakespeare and Company, da amiga Sylvia Beach, à época na rue de l'Odéon, 12. No Bar à Huîtres - 201, boulevard Raspail -, tentei imaginar que cara tinha, no mesmo lugar, o Bistrot Baty, onde o poeta Apollinaire almoçou com o colega Blaise Cendrars, vendo passar, rumo ao vizinho cemitério Montparnasse, em 1918, cortejos fúnebres de vítimas da gripe espanhola - insuspeitado mal que dias mais tarde o levaria. Em vão busquei traços do poeta Rimbaud na Campagne-Première, rua em que foi pingente na mansarda de um cortiço que já não existe. Mas constatei que ali, além da antiga residência do fotógrafo Eugène Atget, segue firme e estrelado o Hôtel Istria, cuja rechonchuda memória alberga os artistas plásticos Francis Picabia e Marcel Duchamp, o compositor Eric Satie e os poetas Rainer Maria Rilke e Vladimir Maiakovski. E mais a Alice Prin, conhece?, modelo de pintores e do fotógrafo Man Ray, seu companheiro (que a clicou para o arquifamoso Violon d'Ingres), beldade cujo nome de guerra incorporou o do bairro: Kiki de Montparnasse.Também em vão busquei o n.º 8 do Impasse Ronsin, último endereço do ateliê do escultor Brancusi - hoje esplendidamente reconstituído em espaço sob medida ao lado do Beaubourg. Nem a ruinha sobreviveu. Mas o acaso me levou ao 21 da avenue du Maine, florido beco onde viceja um reduto de artistas - e, nele, o atelier e a residência parisiense do nosso Frans Krajcberg. E pensar quantos tesouros como esse esconderá Paris, à espera da nossa curiosidade.

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