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García Márquez: um autor seduzido pela magia

Colombiano deixa uma obra de ficção alimentada pela realidade ao seu redor

Por Carlos Granés e ensaísta
Atualização:

Em 1971, quando jornalistas de meio mundo procuravam descobrir as fontes inspiradoras de 'Cem Anos de Solidão', um deles perguntou a Gabriel García Márquez sobre seu avô, o coronel Nicolás Márquez. "Tinha anos quando morreu", respondeu ele. "Desde então nada importante me ocorreu. Tudo ficou muito prosaico". O coronel morreu em 1937, quando García Márquez tinha 10 anos, mas isso era o de menos. Aquela frase engenhosa encerrava uma grande verdade. Em termos literários, nada de importante ocorreria depois de 1937 porque o seu mundo fictício, pelo menos Macondo, nasceu das histórias, lembranças e frustrações do seu avô materno.

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O coronel Nicolás Márquez lutou e perdeu a Guerra dos Mil Dias (1899-1902), a mais sangrenta entre as inúteis e muito sangrentas guerras civis na Colômbia entre os partidos liberal e conservador, durante o século 19 e princípios do 20.

As histórias de campanha do coronel, lutando ao lado do caudilho liberal Rafael Uribe Uribe, alimentaram a imaginação de Gabriel. E assim tinha de ser, inevitavelmente, porque os primeiros anos de sua vida passou com os avós.

Sua mãe, Luisa Santiago Márquez, chegou grávida em Aracataca, "uma aldeia empoeirada, cheia de silêncio e de mortos" como descreveu García Márquez certa ocasião e logo depois de dar à luz partiu com seu marido, Gabriel Eligio García, para Barranquilla.

Gabito não teve plena consciência da existência dos seus pais até 1936, quando Gabriel Eligio, com quem nunca teve uma boa relação, retornou para levá-lo para Sincé, outro povoado do Caribe colombiano.

Gabito cresceu alimentado pelas lendas contadas pela avó, Tranquilina Iguarán, e pelas lembranças do seu avô, o coronel. Relatos de fantasmas, endemoniados e defuntos, de um lado, e histórias de matanças, empresas exploradoras de banana, coronéis e caudilhos liberais que lutaram e perderam mil vezes a mesma batalha. O mundo mental de García Márquez ficou ancorado no século 19 vivido pelo seu avô e, mais além do que achava sua avó, o lugar físico em que ele reuniu essas experiência foi a grande casa de Aracataca.

'Viver para Contar-la', autobiografia que publicou em 2002, começava então com a viagem que ele fez aos 23 anos com a mãe para Aracataca, depois de uma longa ausência, para vender a velha casa do avô. Voltar a ver aquela casa grande foi determinante em sua vida. Reafirmou seu desejo de se tornar escritor e lhe forneceu o tema sobre o qual trabalharia reiteradamente nos 17 anos seguintes: suas recordações da infância em Aracataca ao lado dos avós.

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O primeiro romance que tentou escrever se chamou 'La Casa'. Uma tentativa fracassada que, no entanto, lhe serviu para escrever mais tarde 'La Hojarasca' (1955) romance em que Aracataca já se converte em Macondo, e vários dos seus primeiros relatos. A este trabalho se seguiram 'Ninguém Escreve ao Coronel', 'A Má Hora' e um grande número de artigos e reportagens jornalísticas. Mas seu grande triunfo, o grande romance em que se fundiram as obsessões infantis com as técnicas literárias aprendidas de escritores americanos, como Faulkner, Dos Passos, Hemingway, Steinbeck e de europeus como Woolf, Camus e Kafka (cujo estilo reconheceu de imediato ("é assim que falava minha avó") foi 'Cem Anos de Solidão'.

Neste grande romance, García Márquez retomou os recursos técnicos do romance moderno para narrar episódios pré-modernos: mitos e lendas, matanças tropicais, guerras caudilhistas, folclore popular, inventos fabulosos, colonizações imperialistas e prodígios místicos, e o resultado de tudo isso foi um universo no qual modernidade e tradição, realidade e fantasia, história e mito, experiência e sonho, conviviam sem nenhum atrito.

Em 'Historia de Un Deicidio', Vargas Llosa mostrou o segredo por trás deste prodígio. Essa verossimilhança que García Márquez conseguiu foi resultado de uma inversão que fez da carga emocional com que narrava os episódios sobrenaturais e os acontecimentos vulgares. Os tapetes voadores, a levitação do padre Nicanor ou a ascensão ao céu de Remedios la Bella eram contados como fenômenos comuns e correntes, ao passo que para descrever a chegada a Macondo o gelo, o ímã ou o telescópio, ele usou os adjetivos mais exaltados, como se fossem quimeras impensáveis e não objetos vulgares. Está aí a arte do realismo mágico de García Márquez.

A fascinação mundial despertada por 'Cem Anos de Solidão' foi a reação lógica à energia poética do escritor e à sua fulgurante imaginação. Mas também a um tema que ronda as fantasias dos ocidentais desde o descobrimento do Novo Mundo e que a partir da Revolução Cubana se transformou em verdadeira obsessão: a inocência do latino-americano e o poder corruptor do Ocidente.

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A Macondo criada por García Márquez é um "paraíso de umidade e silêncio, anterior ao pecado original". Ocorriam desgraças naturais, calamidades e epidemias, inclusive guerras e atos de violência, mas tudo fazia parte de um ciclo natural, perfeitamente lógico e previsível. Naquele povoado mítico havia uma cadeia do ser, as coisas estavam bem ordenadas e até o vício e a morte cumpriam um papel fundamental nos ciclos da vida. Mas de um momento para o outro houve "um transtorno colossal, muito mais perturbador do que o dos antigos ciganos, mas menos transitório e compreensível". Mr. Herbert e Mr.Brown, dois emissários da United Fruit Company, chegaram para explorar o cultivo da banana. E com eles veio a discriminação, exploração, perda da inocência, protesto, e finalmente o 'Massacre das Bananeiras', um trauma real na história da Colômbia que García Márquez adicionou com brilho literário ao seu romance, com o qual tem início a decadência de Macondo.

Não foi por acaso que ele incluiu esta velha noção em suas fantasias originais. Enquanto escrevia seus primeiros contos, o aprendiz de escritor compartilhou sua vocação literária com o jornalismo. Começou escrevendo no jornal El Universal, de Cartagena, depois no El Heraldo, de Barranquilla, e finalmente em El Espectador, um dos periódicos mais importantes da Colômbia. Como jornalista fez suas primeiras viagens à Europa Roma e Paris, e como jornalista também cruzou a Cortina de Ferro para ver a vida nos países comunistas.

Seu interesse pela política, e em especial pelo socialismo, tornou-se uma prioridade vital. Em 1955, viajou pela Polônia e Checoslováquia e em 1957 foi até Moscou, depois de passar por Berlim. Sobre esta última viagem ele escreveu várias reportagens, 'Viajando pelos países socialistas', nas quais relatou suas impressões ambivalentes sobre o mundo soviético.

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A experiência o convenceu de que a América Latina necessitava de uma nova fórmula. Socialismo sim, mas não no estilo soviético. A solução não era adaptar as ideias de Marx, Lenin, Trotski ou Sartre ao contexto latino-americano, mas buscar formas de governo nascidas no nosso contexto cultural que mantivessem afastada a influência das potências ocidentais.

"Por favor, c..., deixe-nos fazer em paz a nossa Idade Média!", disse o Simón Bolívar que ele criou em 'O General em Seu Labirinto', romance de 1989. E esse foi, justamente, um dos pilares do seu pensamento político. As potências ocidentais não deviam interferir no desenvolvimento histórico da América Latina, impondo o modelo capitalista, democrático, liberal que haviam assumido. Pelo contrário, deviam deixar que cada país pouco a pouco encontrasse a melhor forma de administrar e exercer o poder. Mas houve algo que García Márquez não levou em consideração.

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O Bolívar real tinha visto que a forma local de autogoverno, que frustrou seu projeto de integração latino-americana, era o caudilhismo. A "Idade Média" que a América Latina viveu depois da independência foi a idade do caudilho e do cacique, dos homens fortes que impuseram seu poder nas regiões por meio da força e a submissão dos seus congêneres. García Márquez sabia disso. Mas sua reação diante destes personagens foi ambígua. 'Os Funerais da Mamãe Grande', conto escrito em 1962, retratou com sarcasmo e simpatia o vivo exemplo de um deles, neste caso uma mulher, tão poderosa que era até dona "dos direitos do homem". E também 'O Outono do Patriarca', romance que veio depois de 'Cem Anos de Solidão' e que girou em torno de um ditador velho e solitário evocando seus dramas pessoais.

O caudilho onipotente e anti-imperialista rondou as fantasias de García Márquez desde que era muito jovem, pelo menos desde 9 de abril de 1948, data em que mataram o caudilho liberal Jorge Eliécer Gaitán a poucas quadras da sua casa, em Bogotá, onde vivia. Esta fascinação não demorou a saltar da literatura para a realidade.

García Márquez teve simpatias pelo general Juan Velasco Alvarado, ditador de esquerda do Peru entre 1968 e 1975 e depois foi amigo íntimo de Omar Torrijos, ditador panamenho. Mas a figura autoritária e anti-imperialista que o acompanhou nestas últimas quatro décadas foi Fidel Castro, uma versão vitoriosa do seu avô Nicolás Márquez.

Como sucede com tantos intelectuais latino-americanos, a Revolução Cubana deslumbrou Gabriel García Márquez. Mas diferentemente de muitos outros, que não toleraram a deriva autoritária do comandante, o escritor colombiano continuou fiel ao caudilho, ao patriarca que oferecia essa equação de anti-imperialismo, retórica de esquerda e o poder absoluto que tanto o seduziu.

O prestígio que obteve com seus romances e depois com o merecido Prêmio Nobel de 1982, foi colocado a serviço de Castro e da sua revolução, e todos os contatos políticos que cultivou ao longo dos anos foram usados em benefício de Cuba. A ilha caribenha foi a sua Macondo. Uma Macondo sem multinacionais estrangeiras, onde as maldições recaíam somente sobre os contrarrevolucionários e os inimigos do sistema.

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García Márquez deixa para a América Latina uma das obras literárias mais imaginativas de todos os tempos e,ao mesmo tempo, a ideia prejudicial de que nossos problemas foram causados apenas pela presença de agentes externos. Em Macondo, esse mundo mágico, era assim.

Na realidade, boa parte das nossas confusões históricas foram causadas pela fascinação dos latino-americanos pelo poder e pelos caudilhos e o desprezo pelas instituições democráticas. Passaram-se os anos e embora as coisas tenham melhorado, ainda temos um pé fincado "na nossa Idade Média". Por isso ainda não vivemos em paz.

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