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García Márquez: mais vivo do que nunca

O escritor colombiano, que já ganhou o Nobel de Literatura comenta a falsa carta de despedida publicada na Internet, revisa as 2.200 laudas do primeiro dos três volumes do livro de memórias Viver para Contar e dedica-se ao jornalismo, na revista Câmbio, da qual é sócio e presidente do conselho editorial

Por Agencia Estado
Atualização:

Gabriel García Márquez sempre é notícia. Na imensa maioria das vezes, em virtude de suas obras literárias. Em outras oportunidades, por suas declarações sobre assuntos da Colômbia e mundiais. E, neste ano em particular, em virtude de seu estado de saúde, tema que rendeu uma série de conjecturas e anúncios prematuros de sua morte, que circularam pela Internet e provocaram um alvoroço entre seus leitores e a mídia. Nos últimos dias, o nome do escritor colombiano que já recebeu um Prêmio Nobel ressoou na mídia sul-americana em virtude das duras referências que o presidente Hugo Chávez, da Venezuela, e seu chanceler, José Vicente Rangel, fizeram referindo-se às informações sobre os vínculos do governo venezuelano com a guerrilha colombiana, publicadas na revista Cambio, da qual García Márquez é sócio e presidente do conselho editorial. Irritado, Rangel assegurou que se tratava de um tipo de jornalismo de realismo fantástico. "A declaração dele me pareceu mais inquietante porque pensei que o chanceler não poderia tê-la feito sem a autorização do presidente", declarou o escritor em entrevista ao jornal El Tiempo, que o encontrou na Cidade do México e roubou uma parte do tempo que ele pretendia dedicar à revisão do primeiro volume de suas memórias. "Felizmente, o mesmo coronel Chávez confirmou a informação de Cambio antes de decorridas 24 horas e, desse modo, a notícia e a seriedade da revista permaneceram de pé." O que afinal disse o chanceler Rangel? "A participação de militares venezuelanos no Caguán é falsa, essa é uma mentira jornalística que corresponde à ficção científica ou ao realismo mágico," afirmou ele, há dez dias, a propósito do material publicado na Cambio, na qual são mencionados ainda os nomes dos oficiais venezuelanos que visitaram as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) na região de Caguán. Rangel negou que aqueles contatos tenham sido feitos por militares ativos venezuelanos. O presidente Hugo Chávez esclareceu que o capitão de seu país, Ramón Emilio Rodríguez Chacín, foi a Caguán com a intenção de obter a libertação de vários seqüestrados venezuelanos que estão em poder das Farc. A revista Cambio revelou que órgãos de segurança da Colômbia detectaram que Rodríguez, representando Rangel, se havia convertido em um negociador com amplos poderes para obter a libertação de pessoas seqüestradas. Segundo a revista, depois da libertação de cinco pessoas Rodríguez voltou a visitar a zona de distensão três vezes, duas em outubro de 1999 e uma em fevereiro deste ano. Gárcia Márquez confessou, no entanto, que ainda considerava uma falta de respeito a si mesmo e à sua obra o fato de o chanceler venezuelano ter declarado para o mundo que uma notícia é falsa porque é um realismo mágico, um comentário irônico sobre o gênero literário que consagrou o escritor colombiano e que, por ele, foi tornado universal. "A primeira condição do realismo mágico, como o seu nome indica, é que seja um fato rigorosamente certo, mas que pareça fantástico", comentou. "Muitos poucos países do mundo o demonstram melhor do que minha querida Venezuela." O escritor decidiu também comentar os inúmeros boatos que circularam no mundo sobre seu estado de saúde - incomodou-o especialmente as diversas mensagens eletrônicas que circularam pela Internet com um texto comovente supostamente de sua autoria e que representaria uma carta de adeus. "Há mais de um ano fui submetido a um tratamento de três meses contra um linfoma, e hoje eu mesmo me surpreendo com a enorme loteria que foi esse tropeço em minha vida", afirma. "Receando não ter tempo para terminar os três volumes de minhas memórias e os livros de contos que havia iniciado, reduzi ao mínimo minhas relações com amigos, desliguei o telefone, cancelei as viagens e todos os tipos de compromissos pendentes e futuros, e isolei-me para escrever todos os dias sem interrupção desde as 8 da manhã até as 2 da tarde." Vício favorito - García Márquez revela que, durante esse tempo, já sem remédios de nenhum tipo, suas relações com os médicos se reduziram a controles anuais e a uma dieta simples para não passar do seu peso adequado. "Enquanto isso, voltei ao jornalismo, ao meu vício favorito, que é a música, e coloquei em dia minhas leituras atrasadas." A experiência frutificou: o escritor conta que se sente atualizado como nunca e conseguiu desfrutar muito mais a companhia dos amigos. O repouso e o isolamento também renderam literariamente: "Tudo isso me deu o tempo e a boa disposição para escrever as 2.200 laudas do primeiro volume de minhas memórias, que acabo de terminar, e espero iniciar o segundo em janeiro, depois de terminar um dos livros de contos e revisar a fundo o manuscrito do outro." O e-mail que circulou pela rede mundial, anunciado como um testamento de vida e literário, desagradou sobremaneira ao escritor, não apenas pela qualidade duvidosa do texto, mas também pelo grau de credibilidade que conquistou em diversos países. "A única coisa que me preocupa é o receio de morrer de vergonha de que acreditem que escrevi algo tão ridículo", afirma, entre irritado e desanimado. "Li isso há pouco tempo, e o que mais me surpreendeu é que meus leitores pudessem crer que foi escrito por mim; a única explicação que me ocorre é a de que alguém está recebendo muito dinheiro pela divulgação." Não satisfeito em tornar pública sua insatisfação, García Márquez decidiu desmascarar a confusão feita da autoria do texto, creditado como sua. "Quem divulgou essas linhas nem sequer se deu ao trabalho de escrever, porque é um texto roubado; o verdadeiro autor é um jovem ventríloquo mexicano, que o escreveu para o seu boneco, e não tem nada a ver com a divulgação." O escritor pensou em pedir auxílio à Justiça, preocupado com os efeitos práticos e morais provocados pela mensagem, pois o verdadeiro autor sentiu-se lesado e o ameaçou. "Alguém o aconselhou a me processar por assinar e divulgar um texto dele, e creio que teria razão; mas também tenho de agradecer, em parte a esse texto anônimo, pelo fato de eu ter recuperado o tempo e o sossego que havia perdido em virtude da desgraça da fama." Fatos marcantes - O incidente interrompeu, mas não comprometeu o fluxo criativo e memorialístico de García Márquez, durante o período em que escrevia sobre os fatos marcantes de sua vida. Como outros tão famosos, o escritor colombiano está decidido a contar também detalhes sobre sua família com seu estilo peculiar. A empolgação refletiu no volume de páginas escritas. "Acabo de terminar o primeiro volume de 2.200 laudas, que poderão dar umas 900 e tantas páginas com uma tipografia cômoda", contou. "O relato começa com a vida de meus avós maternos e os amores de meu pai e minha mãe, no início do século e termina em 1955, quando publiquei meu primeiro livro, La Hojarasca, até minha viagem à Europa como correspondente do jornal El Espectador." Os problemas enfrentados nessa excursão serviram também como fonte de inspiração. Morando em um minúsculo estúdio no alto de um edíficio em Paris, García Márquez dependia do salário e da ajuda familiar, que vinham da Colômbia, para sobreviver e pagar o aluguel, já atrasado. Todos os dias, ele conta, descia apreensivo as escadas até a caixa de correio, esperançoso de encontrar a correspondência salvadora. "Era uma situação desesperadora", diz. O aperto frutificou no futuro, pois o inspirou a escrever a novela Ninguém Escreve ao Coronel (editado no Brasil, como toda a obra do escritor, pela Record), em que um militar reformado e em difícil situação financeira aguarda obstinado a notícia de que sua aposentadoria foi aprovada. O livro rendeu ainda uma versão cinematográfica, dirigida pelo mexicano Arturo Ripstein. "O segundo volume - conta o escritor -, continuará a contar minha vida até a publicação de um de meus principais livros, Cem Anos de Solidão, mais de 20 anos depois; o terceiro terá um formato diferente, e só conterá recordações de minhas relações pessoais com seis ou sete presidentes de países diferentes." Sua eterna paixão pelo ofício da escrita é responsável pelo título das três obras, já decidido por García Márquez. "O título geral dos três tomos não é mais do que a pura verdade: Vivir para Contar-le ("Viver para Contar")", comenta.

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