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Furacão em Copacabana

Para aproveitar a presença de Sartre no Rio, Braga e Sabino editaram livro dele em 7 dias

Por Humberto Werneck
Atualização:

Nestes tempos de nerds e startups, fica difícil imaginar as condições para lá de amadorísticas em que surgiu e vicejou, quase 60 anos atrás, um empreendimento vitorioso como a Editora do Autor, marco na história da edição no Brasil, de vida breve mas capaz de fazer a cabeça de uma geração de escribas e leitores. Para que se tenha ideia do grau de improvisação em seus começos, basta dizer que o primeiro lançamento, Furacão sobre Cuba, improvisada coletânea de escritos jornalísticos de Jean-Paul Sartre, levou apenas 7 dias – isto mesmo, uma semaninha – para ser organizado, traduzido, impresso e lançado, com enorme sucesso, no Rio de Janeiro.

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Nem Rubem Braga e nem Fernando Sabino, criadores da editora, teriam acreditado, duas semanas antes, naquele furacão editorial sem precedentes, em cujo rastro viriam livros, entre outros, de Drummond, Vinicius, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, João Cabral, Jorge de Lima, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e, claro, de seus editores. 

Rubem, com numerosas seleções de crônicas, e Sabino, com o romance O Encontro Marcado, já eram escritores conhecidos e reconhecidos. O primeiro, contemplativo e de poucas palavras, estava quieto no seu canto, até que Sabino, seu oposto no temperamento, lhe introduziu na cabeça umas indóceis minhocas editoriais. 

Dez por cento sobre o preço de capa dos livros era remuneração curta demais para um escritor, insistia o cronista e romancista mineiro – e, antevendo a caixinha de música que seria o tilintar de moedas na conta bancária, propunha ao Braga: por que não editamos nós mesmos aquilo que escrevemos? A ideia, naquele ano de 1960, lhe viera numa conversa com o jurista Walter Acosta, que se dava bem com um esquema de editar por conta própria seus escritos sobre direito processual penal. 

Cutucado por Sabino, Rubem se animou – e se puseram os dois, e mais Acosta, a formatar (verbo que então nem existia, pois, segundo o Houaiss, só chegou aos dicionários em 1964) a Editora do Autor. Além deles mesmos, mandariam para as livrarias, de saída, obras de amigos como Vinicius de Moraes e Paulo Mendes Campos, que cobriam os respectivos custos. Para tanto, alugou-se espaço no 70 da rua Araújo Porto Alegre, grupo 413. “Acho meio exagerado chamar aquelas salinhas de ‘grupo’”, escreveu o Braga, “mas o Acosta disse que isso dá boa impressão no interior.”

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Estavam as coisas ainda meio informes quando, na casa de Jorge Amado, em Salvador, Rubem Braga conheceu Jean-Paul Sartre – e, entre uma birita e outra, na companhia também de Simone de Beauvoir, propôs a ele reunir em livro uma série de artigos que escrevera depois de recente estada em Cuba, onde a Revolução de Fidel e Guevara mal completara um ano no poder. Sartre nem pestanejou seu olho torto: não só deu sinal verde como abriu mão de seus direitos, generosidade que, segundo o Braga, faria dele, do ponto de vista de qualquer editor, “o autor ideal”. 

O cronista, que nas memórias de Simone de Beauvoir é apresentado como “un journaliste de Rio” (melhor do que Sabino, não mais que “um dos amigos” do Braga e “un catholique de gauche”), voou de volta ao Rio, levando aos comparsas a boa nova – mas também um problema: como aprontar o livro a tempo de que o autor pudesse estar no lançamento? 

Os 17 textos de Sartre foram traduzidos no galope, num mutirão para o qual foram mobilizados amigos dos editores, e entregues sem tardança à goela de uma gráfica – tudo, como se disse, em não mais de uma semana. Não se sabe se para encorpar o volume ou pegar carona em Sartre, a Furacão sobre Cuba se acrescentaram reportagens de Braga e Sabino que, meses antes, na comitiva de Jânio Quadros, candidato à presidência da República, tinham visitado a ilha de Fidel.

O livro seguiu direto das máquinas para a noitada de lançamento, dia 17 de setembro, no Super Shopping Center, hoje Shopping Cidade Copacabana, na rua Siqueira Campos, cuja construção ainda nem estava terminada. Houve o sufoco adicional de que, passando já da hora marcada, Sartre não aparecia.

A multidão, impaciente e ruidosa, fora engrossada por um magote de estudantes simpatizantes da revolução cubana. “Estamos fritos”, suava frio Acosta. Sabino, por sua vez, se preocupava com a inexistência de eventual rota de fuga, pois, como contou em crônica três dias mais tarde, os responsáveis pela construção tinham mandado “cercar de tábuas as saídas todas”. Quanto ao Braga, sorrateiramente se escafedera, constatou Sabino, que foi encontrá-lo longe dali, pendurado a um telefone. “Não nos deixe lá sozinhos”, suplicou o sócio, “vem ajudar a aguentar a mão, se acontecer alguma coisa”. 

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Felizmente não foi preciso, pois Sartre finalmente deu as caras. Sobre ele, em tietagem frenética, abateu-se a multidão, no que hoje seria um tsunami de selfies. Noite adentro, entre cachimbadas, teve ele que botar seu jamegão em nada menos de 800 exemplares de Furacão sobre Cuba – e não é impossível que, de si para si, tenha confirmado então, na própria pele, sua frase famosa segundo a qual o inferno são os outros.

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