
28 de dezembro de 2020 | 03h00
Um Thunderbird 1966 verde-claro cruzando um deserto cinematográfico. No rádio do carro, Wild Horses. Cantamos o refrão como se estivéssemos no palco minúsculo de um karaokê pulguento.
As cinzas de um cigarro abrem um buraco no banco de trás. A gente ensaia uma discussão. Quem vai pagar? O motorista tira os olhos da pista por um segundo. O carro faz um zigue-zague. No sentido oposto, um caminhão quase engole o nosso Thunderbird. O barulho da buzina invade nossas almas. Somos três idiotas. Mas recuperamos uma certa sobriedade.
A gasolina está no fim. Vamos parar no próximo posto para abastecer, usar o banheiro, tomar uma água e comprar cerveja. Bom, pelo menos esse era o plano...
Pelo retrovisor, do banco do passageiro, vejo que ele não desistiu: o ano de 2020 ainda está nos perseguindo.
É um zumbi desconstruído caminhando com passos pesados. O que ele quer? Já não teve o suficiente?
Acho que o motor pifou. É pifou que fala? Ninguém no carro entende nada de mecânica – mas deve ser consequência da pouca gasolina e do calor.
O melhor será enfrentar esse resto de 2020.
Descemos do carro. Do porta-malas, sacamos máscaras, álcool em gel e uma carabina.
Ele segue em nossa direção, o 2020 é implacável.
De sua pele gosmenta, vem um cheiro de exaustão, de luto, de sonhos interrompidos, de lockdown, de home office, de desemprego, de beijos proibidos, de amantes apartados, irmãos separados, negacionismo e burrice.
O Thunderbird 1966 verde-claro explode. E o 2020 segue inabalável em nossa direção. Um dos meus amigos tira uma cruz do bolso e aponta para o monstro.
– Cara, isso não funciona com zumbi – falo.
– Como você sabe? – pergunta ele.
– Cruz é pra vampiro – digo.
– Eu tenho uma bala de prata –
comenta o outro integrante do trio.
– Bala de prata é pra lobisomem – repreendo.
Tento a carabina, mas o tiro atravessa 2020 como se nada fosse. Ele, o inominável 2020, vai se aproximando. Chegamos tão perto do fim. Não é justo morrer na véspera de um ano novo.
– NÃO É JUSTO! – grito.
O tal do 2020 ri da minha indignação. Agora, somos três franguinhos assustados prontos para o pior.
Eis que 2020 cruza os braços e dá uma última ordem: SAIAM DA MINHA FRENTE.
Corremos. Sem pensar. Quase sem respirar. Ensopados de medo. Corremos, corremos até o dia 31 de dezembro, até o bafo quente de 2020 desaparecer das nossas nucas.
Acabou. Nos abraçamos no meio da estrada. Cansados. Consumidos pelo medo. Trapos imundos.
Nosso carro explodiu. Não temos dinheiro e muito menos para onde ir. Tudo que a gente queria era uma cerveja gelada.
Um de nós faz uma piada sobre o ano que deixamos para trás. Estamos rindo de novo, fazendo planos e nos abastecendo de esperança.
A esperança é uma arma quente.
Agora, somos todos do Incrível Exército de Brancaleone. Seguimos cantando uma canção do Roberto.
Vamos encarar o próximo monstro, tentar domá-lo e sobreviver aos seus caprichos.
À primeira vista, ele não parece nada bonito. Mas seguimos nossa marcha sem olhar para trás. Não existe outra opção.
E que 2021 nos aguarde.
É REPÓRTER DO ‘ESTADÃO’ E OBSERVADOR DA VIDA URBANA
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