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Freud e a potência da feminilidade

Ensaios[br][br]Livro de autoria de John Forrester e Lisa Appignanesi traz à tona o debate sobre a[br]presença da mulher não apenas na teoria, mas também na concepção da psicanálise

Por Giovanna Tucci
Atualização:

Acusado de ser um misógino, um conservador que entendia como principal função das mulheres a de servir à reprodução da espécie, Freud tanto demonstrou grande constância no que diz respeito à questão da sexualidade feminina, como deixou o debate em aberto. No entanto, ainda que reconhecesse que a sexualidade da mulher adulta era como um "continente negro", suas posições teóricas acerca da feminilidade suscitaram, desde sempre, oposição no meio psicanalítico, tanto de psicanalistas mulheres colaboradoras e amigas, como de analistas homens então inscritos em uma linha de pensamento "ortodoxo".As relações de Freud com seus professores, colegas, discípulos e amigos - como Jean-Martin Charcot, Joseph Breuer, Carl Gustav Jung, Otto Rank, Sandor Ferenczi - e as importantes funções que exerceram em relação ao Professor, no que diz respeito à constituição e expansão da psicanálise, são notórias. A referência a Arthur Schnitzler como seu "duplo literário", a frequência com a qual o pai da psicanálise recorria às obras de Johann Wolfgang von Goethe, Friedrich Schiller e William Shakespeare explicitam claramente suas preferências.Sabemos, ainda, que a relação com seu amigo Wilhelm Fliess, com quem se correspondeu por mais de uma década, compartilhando sua prática inicial, foi o que possibilitou o exercício de sua autoanálise. Com efeito, ao dedicar-se à autoanálise e ao trabalho dos sonhos, o que Freud fez foi pôr em andamento um movimento interior que terminou por instituir a própria psicanálise.Até o dia de hoje, contudo, não tínhamos tido a dimensão justa do efeito que as mulheres tiveram sobre o Professor - e, consequentemente, sobre a gestação e produção permanente de sua "ciência dos sonhos". As Mulheres de Freud (762 págs., R$ 89,90), de autoria do casal John Forrester e Lisa Appignanesi, com tradução de Sofia de Souza e Nana Vaz, lançado recentemente pela Record, vem lançar luz única sobre a temática.De fato, a fala psicanalítica nasceu das palavras de Anna O. (Bertha Pappenheim), paciente de Breuer tomada de empréstimo por Freud e criadora da "talking cure" (cura pela palavra), ou "chimney-sweeping" (limpeza de chaminé). Se, ao cair da tarde, era imprescindível que Bertha falasse a seu médico, no intuito de "dar expressão" às suas angústias, outra paciente, Fanny Moser (Emmy von N.), que não respondia à sugestão, insistia em falar sobre o que bem entendesse. "Disse-me, num tom de queixa, que eu não deveria continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer", relata Freud durante a sua "aprendizagem" da técnica da associação livre. O tratamento de Iona Weiss (Elisabeth von R.), cuja utilização da hipnose se torna desnecessária, permitiu ainda que o Professor desenvolvesse um método regular de elucidação dos sintomas, vindo a considerá-lo como "a primeira análise integral desenvolvida por mim". Descritos em Estudos sobre a Histeria (1895), publicação conjunta de Freud e Breuer, esses casos evidenciam que a criação da psicanálise nasceu de uma parceria sem precedentes: "Sem pacientes tão hábeis na tarefa de guiar os (analistas), tomar as rédeas de seu próprio tratamento, não haveria psicanálise", salientam Forrester e Appignanesi.A parceria foi repetida com Irma (Emma Eckstein), a primeira pessoa a praticar a psicanálise depois de Freud - revelam os autores -, como também aquela a desempenhar um papel diferente em cada um dos estágios do desenvolvimento da teoria freudiana da realização do desejo. Foi, entretanto, o caso clínico de Dora (Ida Bauer) - que se transformou em um "fracasso exemplar", na medida em que Freud não havia ainda reconhecido "desejo" e "transferência" como um par interdependente - que se tornou, para muitas feministas, um "texto fundador na história das mulheres". Assim, de um lado, se encontrava em Dora "um símbolo (...) da "revolta silenciosa contra o poder masculino sobre o corpo e a linguagem das mulheres"", enquanto que do outro, o "patriarca que condena as mulheres a uma única satisfação, a maternidade". Mas, o que fazer quando o lado que condena é o mesmo que contém o "libertador potencial que ouve com atenção os relatos das mulheres e nega qualquer "essência" determinante da feminilidade"? Sempre rodeado de mulheres fortes e influentes - sua jovem mãe, sua babá, Martha, a noiva de quem exigia amor incondicional e posse exclusiva, a cunhada e confidente Minna, as filhas Sophie e Anna, especialmente -, Freud também contava com a amizade (fiel) e admiração de discípulas a quem respeitava e apreciava como Lou Andreas-Salomé. Algumas de suas analisandas favoritas - Helene Deutsch, Joan Riviere, Jeanne Lampl-de Groot, Ruth Mack Brunswick, Marie Bonaparte, Anna Freud - deixaram também algumas marcas indeléveis na profissão.Assim, como que constatando que as formulações teóricas de Freud sobre a feminilidade explicitam o quão sobredeterminadas são as suas ideias, fantasias inconscientes, engajamentos culturais e teorizações interagindo livremente em sua alma, vale dar voz aqui a Hanna Segal, analista kleiniana britânica, que explicita de maneira perspicaz o conjunto das relações do pai da psicanálise com as mulheres: "Acho que a teoria de Freud de que as meninas pensam que têm um pênis e depois descobrem que não têm é bobagem. Por outro lado, Freud foi o primeiro a tratar as mulheres como seres humanos, no sentido de que deu um lugar adequado à sexualidade feminina. Ele não as considerava seres assexuados. E, mais importante do que isso, a psicanálise foi a primeira profissão organizada em que, desde o início, as mulheres foram tratadas de maneira exatamente igual aos homens."GIOVANNA BARTUCCI É PSICANALISTA, AUTORA DE FRAGILIDADE ABSOLUTA. ENSAIOS SOBRE PSICANÁLISE E CONTEMPORANEIDADE (PLANETA) E BORGES: A REALIDADE DA CONSTRUÇÃO. LITERATURA E PSICANÁLISE(IMAGO), ENTRE OUTROS LIVROS

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