A prática da crítica pode, maldosamente, ser considerada atividade exercida sobretudo por gente que sofre do fígado e acaba fazendo da birra a própria cara que se vai tornando cada vez mais feia ? pelo menos do ponto de vista dos criticados. Ora, nem sempre os críticos deixam de ter razão, mesmo quando elogiam a vítima. De qualquer modo, há aqueles casos horríveis, de inopinadas explosões, que deixam meio mundo com medo.A descarga de bílis pode ser tão pesada que arrasa um virtual grande talento para o resto da vida. O britânico Harold Pinter disse que a crítica contra um de seus primeiros, ou o primeiro texto teria livrado o mundo de algumas obras-primas teatrais (isso ele não disse), se um artigo providencial não tivesse sido a tábua de salvação. É mais um caso do autor indefeso à mercê das carantonhas vociferantes. Mas por que tanta fúria e tantas vezes contra obras que de repente se revelam inovadoras? Edward Mendelson, ao escrever sobre The Strenght of Poetry, série de conferência de James Fenton (Book Review, dia 15), fornece a pista que pode nos explicar a reação diante do ainda incompreensível ? brilhantemente analisada, como momento privilegiado, por Anton Erehnzweig em A Ordem Oculta da Arte. Em duas resenhas, Mendelson registrou a reação raivosa, a ofensa ?além de qualquer proporção imaginável?. Mendelson explica: ?A fúria intelectual geralmente parece ser uma forma de defesa contra o conhecimento intolerável. (...) O que é que eles tão urgentemente querem ignorar?? A pergunta vale por si própria como resposta cristalina. Bem, mas o artigo de Mendelson, sobre poesia, tem o seguinte título: O pessoal é poético. Um título com todo o jeito de lugar-comum. E é isso mesmo, um lugar-comum, mas dos bons, lembrados pelo simples fato de que são necessários. Sim, o estritamente pessoal é poético: o desencanto e a ironia de Drummond, o lúdico em Borges, a percepção do caos em Murilo Mendes, o delírio em Rimbaud, o sereno desespero em Cecília Meireles, etc. É aí, desses pontos pessoais inalienáveis que vem a poesia de cada um, da qual nós leitores compartilhamos sempre que o autor afunda tanto em si mesmo que sai do outro lado, arlequinal. É daí que vem a força poética. No entanto, essa força resulta da fraqueza e também do que as pessoas consideram, digamos, pequenas ou mesmo grandes falhas de caráter: ?A força da poesia, como James Fenton a percebe, depende da fragilidade dos poetas. Suas conferências sobre escritores do século 20, de Wilfred Owen e Marianne Moore até Sylvia Plath e Seamus Heaney, são tributos aos ardis e confusões, à teimosia e estranhezas que formam a voz única de cada poeta. Ao assumir o que Fenton descreve como humilhações e fracassos, pela recusa a planejar seus caminhos para o êxito, esses poetas se liberam para escrever de maneiras que falam aos seus leitores, como eles jamais poderiam fazer numa forma convencional de potência.? Além disso, pode ocorrer que a força poética decorra de situações nada poéticas, o que parece implicar numa crítica à visão da poesia como algo exclusivamente livresco: ?Fenton é mais impressionado por poetas quando eles são menos marcados pela poesia, especialmente a deles mesmos. Wilfred Owen escreveu seus melhores poemas quando estava distraído da intemporalidade de sua arte por ?uma importante tarefa do aqui e agora: a tarefa de prevenir e ser realista a respeito da guerra.?? D. H. Lawrence, no melhor da sua poesia, ?não está interessado em arte. Mas ele está interessado em liberdade?.