
19 de dezembro de 2015 | 02h00
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Não há paralelo possível entre as duas vidas, mas minha experiência é que basta forçar um pouco qualquer assunto para se ter uma tese. Talvez o que também una o Franz e o Frank seja um engano reincidente na apreciação do que os dois fizeram. Kafka sempre foi considerado um arauto dos tempos negros que se aproximavam, com a derrocada da Europa em guerra e o fascismo já apontando no horizonte. Ele também foi visto como um símbolo dos absurdos da vida moderna, tanto que depois “kafkiano” entraria no vocabulário até de quem nunca lera Kafka para descrever as engrenagens insanas e a burocracia sem sentido trazidas pelo novo. Mas, acho eu, o que Kafka realmente descrevia não eram as agruras do novo e o pesadelo que o futuro nos reservava, mas o peso do passado, solidificado num estado velho e obsoleto que não saía de cima. Como retratado em O Processo.
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O engano, no caso do Sinatra, é que sempre lhe deram o valor que sua voz incomum merecia, desde que ele apareceu no começo dos anos 1940 como ídolo das menininhas, mas era o valor errado. Depois das pubescentes, ele conquistou plateias de todas as idades e gostos, tornou-se ator, teve seu momento de quase ostracismo, mas voltou por cima, e foi, até sua morte, o grande pop star do século. Mas a revista Downbeat, que todos os anos publica um ranking dos melhores artistas de jazz eleitos por críticos e leitores, nunca se deixou enganar. Ano após ano, deu a Sinatra seu valor certo, o de grande cantor de jazz.
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Não se tem notícia de um improviso do Frank Sinatra. Ele nunca fez nada parecido com o “scat singing”, canto sem palavras, de uma Ella Fitzgerald, por exemplo. No máximo recorria a uma nuance ou um fraseado peculiar para personalizar a canção – como se houvesse perigo de alguém não reconhecer sua voz. Por que, então, era considerado, e premiado, como cantor de jazz, mesmo acompanhado por cem violinos românticos em arranjos melosos? Mistério. Talvez a explicação seja que uma nuance bem colocada e um fraseado peculiar têm mais poder do que se pensa, pelo menos entre os seguidores do jazz.
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Kafka pertencia a três tradições literárias, a três línguas diferentes. Era checo, escrevia em alemão e lia iídiche. Seus textos eram, muitas vezes, parábolas de estranhamentos, não extremos como o de um homem transformado em inseto, mas o de um autor escrevendo numa língua que não a materna, e por isso capaz de usá-la com nuances e fraseados – e estranhamento – inéditos. (Ele escreveu no seu diário que a língua alemã o impediu de amar sua mãe como deveria, pois era impossível chamar uma mãe judia de “Mutter”. Para ele, uma mulher judia chamada de “Mutter” seria não apenas cômica como estranha.) Sinatra também foi um estranho na língua da música popular americana, mesmo sendo seu melhor interprete. E usou a aura, o timbre – enfim, o mistério – trazido da sua outra língua, o jazz, para enobrecê-la, como Kafka fez com o alemão. Fim da tese.
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