Francis Hime analisa a própria obra em biografia musical

Autor de temas como Vai Passar e Atrás da Porta lança nesta quinta, em São Paulo, livro 'Trocando em Miúdos as Minhas Canções', no qual traça um estudo sobre a criação

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Por Julio Maria
Atualização:

Se tudo se define nos primeiros anos da infância e se sedimenta na juventude, com Francis Hime foi assim: aos oito anos de idade, isso em 1948, ele era um semi-interno do Colégio Santa Marcelina, na Tijuca. Ou seja, só saía para ir para casa depois de 15 dias caminhando sobre regras e mandamentos. Depois de um breve tempo de respiro em um externato, voltou a outro colégio linha dura e odiou de novo. A vida virou assim uma emergência logo cedo. E não teve pai que o segurou nas noites em que, ainda menor de idade, fugia para ver Luizinho Eça tocar piano no Hotel Plaza, em Copacabana.

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Francis Hime ainda levou tempo para dizer a si mesmo que queria se tornar músico. Antes disso, suportaria toda uma temporada de estudos na Suíça, para onde fora mandado pelos pais para fazer o equivalente ao que era o estudo científico no Brasil (ensino médio), e a faculdade de Engenharia Mecânica. Sem falar nenhuma língua estrangeira, ele embarcou sozinho para uma viagem de 26 horas de avião, com escalas em Recife, Dacar e Lisboa até chegar a Zurique, e ficou em terras estrangeiras até concluir os estudos. Sentiu a vida fazendo as escolhas por ele até que, no dia da formatura, já de volta ao Brasil, faltaria na cerimônia da entrega do diploma para tocar na inauguração da TV Bandeirantes.

As histórias e a música do criador da linguagem harmônica mais sofisticada que se ergueu sobre o mar da bossa nova a partir de 1959, o autor de Vai Passar, Trocando em Miúdos, Atrás da Porta e Choro Rasgado, dentre tantas outras, parceiro de Vinicius de Moraes, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Ruy Guerra, Geraldo Carneiro e Olivia Hime, dentre tantos outros, resolveu contar ele mesmo passagens que dão pistas de como se forma sua personalidade artística, de como é o contexto social em que surge e de como a vida o encaminha para a música de forma tortuosa. O livro se chama Trocando em Miúdos as Minhas Canções, e sai pela editora Terceiro Nome. O lançamento em São Paulo será na próxima quinta, dia 5, na Livraria da Vila.

O projeto desenha traços biográficos desde a infância de Hime até sua produção de trilhas sonoras e composições orquestrais. E, talvez a maior novidade, usa o recurso do QR-Code, viabilizando áudios durante a leitura e propondo um mergulho maior do que uma experiência passiva.

São ao todo 352 QR-Codes distribuídos ao longo do livro, nos quais o compositor analisa, pesquisa e levanta hipóteses das origens de cada canção. Faz comparações entre elas e cruza linhas parecidas que provavelmente se contaminaram na cabeça do criador. Dessas, Hime gravou 150 com exclusividade para o livro. Basta fotografar o código na margem das páginas para se ter acesso às gravações. “Muitas vezes, esses caminhos são meras suposições, embora me pareçam bastante reais. Outras tantas, podem ter realmente acontecido”, resume.

Em uma de suas comparações no QR-Code de número 101, ele analisa as semelhanças entre suas obras Sem mais Adeus (oficialmente sua primeira composição, a primeira a ganhar letra de Vinicius de Morais) e Por um amor Maior. Os estudiosos irão vibrar ao descobrirem que uma começa com as notas invertidas da outra.

“Eu acabei escrevendo algo com um contorno mais autobiográfico”, diz ele. “Queria mostrar, no fundo, como essas canções vêm à tona.” A obra de Francis Hime tem no centro, ele diz, a harmonia. “Mais do que a melodia.” Por isso, nada o frustra mais do que ver os acordes que tanto trabalhou tocados de forma errada, ou com um conceito de rearmonização sem critério algum. “Eu queria desvendar como acontece o processo de criação de um compositor”, ele diz, reforçando que há de se ter respeito quando se executa uma obra alheia.

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Fazendo uma auto-avaliação, um dos maiores autores da bossa nova fala o seguinte sobre seu processo. “O que mais funcionou comigo por todos esses anos foi a inspiração e a emoção que você carrega. Elas podem vir assim que eu ouço uma música do Guinga e aquilo me desperta algo. Vou então para o piano e começo a fazer algo que nada tem a ver com o Guinga, mas que vai se tornar uma nova criação.”

Sobre liberdades de artistas que gravam suas músicas, e isso vale tanto para Chico Buarque (um de seus grandes parceiros, em músicas como Vai Passar) quanto para Elis Regina (que fez uma devastadora interpretação de Atrás da Porta), Hime faz uma observação. “As notas trocadas não me desagradam tanto quanto os acordes, a harmonia, trocados.” Poucas vezes ele se ouviu gravado de uma maneira que o agradou mais do que o próprio original. E uma delas foi com Zeca Pagodinho. “Quando o ouvi cantar Amor Barato, percebi que ele havia mudado a melodia e aquilo ficou muito bom. Eu queria ter feito a música daquele jeito.”

Para não deixar a vida privada encarcerada demais, e atendendo aos comentário de um genro que pediu por mais histórias pessoais, Hime escreveu no livro os dias de atitudes mais rock and roll que um garoto estudado na Suíça, de volta ao Brasil, poderia ter naqueles anos 1960. “Em outras de minhas estripulias noturnas, saí uma noite, igualmente bêbado, com uma daquelas meninas, e quando dei por mim estava acordando – na manhã seguinte, dia claro – ouvindo gritos femininos: ‘Socorro, tem um homem na minha cama’. Eu me encontrava, imaginem vocês, num barraco de uma favela em Botafogo, a Santa Marta, e não havia teleférico na época... Como será que consegui chegar lá?”

As três perguntas que encerram a entrevista são para colocá-lo em saias justas. Seu maior parceiro? “Vinicius de Moraes. Sem ele, acho que nem seria músico.” A maior música que já fez? “Sinfonia do Rio de Janeiro de São Sebastião, ou Trocando em Miúdos, impossível escolher.” O melhor intérprete que já gravou alguma de suas músicas? “Elis Regina.”

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Por anos, ele teve de beber antes de uma apresentação Em uma de suas poucas revelações pessoais, Hime conta que só parou de beber depois de 30 anos de carreira 

Em um dos poucos momentos mais pessoais do livro, Francis Hime fala dos exageros com a bebida. Ele conta do impacto que tinham as apresentações que se prolongavam, levando-o a situações extremas. “Você fazia a estreia, bebia à beça e, no dia seguinte, de ressaca, tinha de encarar o famoso ‘segundo dia’, e então bebia mais e mais e mais – imagine só o estado que ficava o pobre do ‘figueiredo?’”

Ele é corajoso neste momento, que se passa à página 95: “Essa necessidade de beber antes de fazer um show me acompanharia por muitos e muitos anos, até certa ocasião, em meados da década de 1980, em que eu estava prestes a começar uma apresentação no formato piano e voz no lindo Teatro do Paz, em Belém. A casa lotada, cerca de 800 pessoas conversando animadamente, o burburinho gostoso que antecede o espetáculo e... meia hora antes de entrar em cena, senti um desconforto no estômago e me vi na situação de ter de fazer o show completamente a seco, na cara e na coragem. Meu Deus, o que aconteceria?”

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O que acontece vai dar o sinal a Francis Hime. Ele não precisa estar sempre embriagado para se dar bem no palco. “O show foi maravilhoso. O público adorou e eu me senti completamente à vontade e empolgado. Descobri então que sem beber não só os shows eram muito melhores, como eu me divertia muito mais. Afinal, se todo aquele público vai ao teatro pra te ver é porque gosta de você e do seu trabalho. A partir dali, nunca mais bebi uma gota de álcool antes de um show.” Uma decisão importante, mas que só foi tomada 30 anos depois de sua estreia, no Bootle’s Bar, em pleno Beco das Garrafas. “Nada como o acaso”, ele conclui.

O livro segue, na maioria das vezes, por perspectivas musicais quase técnicas, mas colocadas com um respeito aos leigos. Entender Hime, afinal, nunca precisou de atenções maiores do que as despertadas pela própria emoção. 

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