Fragmentos de confissão

Osesp encerra temporada com impecável visão da Nona Sinfonia de Bruckner

PUBLICIDADE

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

"Síntese e despedida". É com essas duas palavras que Lauro Machado Coelho define a Nona Sinfonia de Bruckner, que encerrou quinta-feira, na Sala São Paulo, a excelente temporada 2010 da Osesp. Em seu livro sobre o compositor, Machado Coelho relembra que a sinfonia inacabada evoca, em seus três movimentos existentes, várias obras anteriores: o Kyrie e o Miserere da Missa em ré menor, o Benedictus da Missa em fá maior, a fuga do finale da Quinta Sinfonia, o tema principal da Sétima e o Adagio da Oitava. Mas, em sua grandiosidade, ela é também despedida. Bruckner passou os dois últimos anos de vida trabalhando no finale que jamais completou. Uma despedida que mistura misticismo, religiosidade e horror da morte próxima.Essa atmosfera ambivalente instala-se desde o princípio da sinfonia: uma larga introdução expõe amplo motivo de notas longas apresentado pelas oito "tubas wagnerianas". Foi o derradeiro tributo de Bruckner a seu ídolo maior, Richard Wagner.Amigos comuns conseguiram reunir à mesa de restaurante em Viena Bruckner e Brahms (este, em conversas particulares, costumava chamar de "jiboias sinfônicas" as obras do primeiro; eles nunca se deram bem, apesar de morarem na mesma cidade). A certa altura, Bruckner perguntou a Brahms o que tinha achado de sua Sétima Sinfonia. Johannes teria dito: "Meu caro Bruckner, não entendo suas sinfonias." Ao que Anton teria replicado: "Tenho o mesmo problema com as suas, meu caro Brahms."O fato é que Bruckner avança em relação a Brahms (que trabalha basicamente o motivo) e adota Wagner como guru e modelo técnico. De certo modo, antecipa o processo composicional de Mahler e contém em germe até as melodias de timbres de Anton Webern. É, portanto, o elo de ligação mais forte entre a música clássica tradicional e a revolução da música atonal que explodiria nas primeiras décadas do século 20 com Schoenberg, Berg e Webern na mesma Viena.É preciso contar esses detalhes históricos para se apreciar, em toda a sua dimensão, esta sinfonia portentosa, de dificílima execução, com metais incandescentes e passagens complicadas para as cordas. É, além disso, uma obra que pode levar maestros superficiais à mera busca do efeito, e isso destruiria a essência da música bruckeriana.A Osesp estava em estado de graça em seu último concerto de 2010. Empenhada no primeiro movimento "misterioso"; alerta no agitado scherzo intermediário; e emocionante no imenso Adagio. Tortelier fez a escolha certa, ao adotar postura conservadora, no sentido de interpretar com correção a partitura. Pois, ao fazer isso, ressaltou ainda mais a modernidade da obra. Construir bem um crescendo - e há muitos, recorrentes, na sinfonia, que dinamicamente evolui em espirais de crescendo, clímax e retorno ao ponto zero - é arte sutil: orquestra e maestro foram irretocáveis também nesse quesito.É difícil, aliás, apontar quem esteve melhor, se os metais ou as cordas, os naipes mais exigidos. Melhor elogiar a integração sem falhas da orquestra inteira. Foi uma noite iluminada, graças à notável interpretação desta música genial de Bruckner, compositor que poderia ter feito suas, segundo Machado Coelho em seu belo livro, as palavras de Goethe: "Minha obra é uma série de fragmentos de uma confissão mais ampla."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.