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Fotografia da arte dos sons

Introdução à Sociologia da Música, que reúne conferências de Theodor Adorno feitas em 1961[br]e 1962, rompe com a oposição entre as análises técnicas e o olhar apenas documental das obras

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Adorno para as massas? A pergunta soa insolente e despropositada, mas talvez seja pertinente com relação à Introdução à Sociologia da Música, o livro mais popular de Theodor Adorno (1903- 1969), filósofo e pensador da música mais importante do século 20. Ele reúne uma dúzia de conferências feitas em 1961/62 na Universidade de Frankfurt. Boa parte delas foi transmitida pelo rádio na Alemanha.Daí a linguagem bem mais direta do que seus demais escritos; é o quinto lançamento da edição crítica de sua obra, iniciada em 2008 pela Editora da Unesp. Escancaram-se sua acidez, ironia e escracho com a música que a seu ver deveria ir diretamente ao lixo, casos do jazz e da música ligeira, além da "grande música" conservadora. Em sua Teoria Estética, ele afirma que "a ideia de uma obra de arte conservadora contém algo de absurdo", já que faz parte do DNA da obra de arte ser "a priori polêmica". Numa penada, qualifica a vida musical oficial em todos os seus estratos - com exceção da música nova e da música de câmara, seus xodós - como "mero prazer culinário". Ou seja, "na música ligeira, escuta-se com apenas uma orelha"; e "quem assobia uma canção para si mesmo acaba dobrando-se ao ritual da socialização". Em suma, até assobiar já é pecado. Em todo caso, é sempre prudente não cometer reducionismos com Adorno. No prefácio, Flo Menezes relembra duas sábias afirmações de Luciano Berio, um dos grandes nomes da vanguarda do século 20: "É difícil rejeitar completamente qualquer coisa escrita por Adorno"; e "a música não escapa às leis do mercado"."No decurso do século passado", escreve Flo, "não se conhece outro pensador que melhor entenda - como um expert, um compositor mesmo - a linguagem musical e, ao mesmo tempo que reconhece suas implicações sociais e ideológicas, se precautele diante de todo juízo maniqueísta". O sociólogo francês Pierre-Michel Menger, reconhecido especialista em sociologia da música, concorda com Flo em recente artigo sobre Adorno (L"Année Sociologique, vol. 60/2010, n.º 2): "Adorno permanece, até hoje, o único filósofo e sociólogo cuja obra propôs ultrapassar a oposição entre uma análise estética e técnica das particularidades de cada obra e uma interpretação sociológica que decifraria as obras musicais como documentos e exemplos de tendências e de estruturas sociais gerais".E a razão dessa concordância é óbvia: ninguém até hoje se ombreia com Adorno no pleno domínio de ambos os universos. Já no início do livro ele alerta que "desenvolvi princípios de um trabalho sociológico musical, sem separá-los das questões acerca do conteúdo; justamente nisso permanece o elemento específico de meu método". E emenda que "uma sociologia da música em que a música significa mais que os cigarros ou os sabonetes das pesquisas de mercado requer não só a consciência da sociedade e de sua estrutura e tampouco apenas o mero conhecimento informativo acerca dos fenômenos musicais, mas a compreensão integral da música em todas as suas implicações".Para conseguir isso, aplica à sociologia da música ferramentas marxistas, ou seja, analisa a música a partir da "relação entre as forças musicais produtivas e as relações de produção". A grande música ("forças produtivas"), pode modificar o gosto do público (as "relações de produção"). De igual modo, as transformações das relações sociais podem agir positivamente sobre o momento da criação: "Strauss seria inimaginável sem a ascensão da grande burguesia alemã e sem a influência desta sobre as instituições e o gosto".Meio século atrás, o pensador já mostrava com clareza que é possível unir o melhor de dois mundos numa síntese que é fundamental no trato com a obra musical: ser sistematicamente rigoroso nos dois enfoques. [A OBRA]A maior virtude da sociologia da música de Adorno é também seu maior defeito. Só ele conseguiu realizá-la em sua plenitude. Menger a qualifica como de caráter normativo. Verdade, porque Adorno dá as costas às pesquisas empíricas e toma como norte a música nova, a única que espelha em sua estrutura musical as tensões visíveis nas relações sociais.O marco zero da perfeita conjunção entre forças musicais produtivas e relações de produção, para Adorno, aconteceu com Beethoven, no princípio do século 19 - em seus últimos quartetos. Na música de câmara, "não se pressupõe qualquer distinção entre aquele que toca e aquele que escuta (...) Beethoven derivou o critério do verdadeiro quarteto de cordas das exigências imanentes do gênero, e não de modelos deixados em herança", como tinha funcionado até então na história da música. "A pequena sala era o lugar de um cessar-fogo entre a música e a sociedade. O cessar-fogo camerístico musical entre a arte e a sociedade não durou: o contrato social foi dissolvido." Assim, enquanto a música oficial caminhava em direção à monumentalidade, não foi por acaso que "a música de câmara e a eclosão capitalista não se davam bem. A tendência da música de câmara, que então criava uma concordância efêmera entre todos os partícipes da música, dissociou-se da recepção antes de todos os demais tipos musicais. A evolução da nova música teve início precisamente em tal âmbito. As inovações decisivas de Schoenberg não teriam sido possíveis, caso ele não tivesse renunciado à pompa dos poemas sinfônicos de sua época e se não tivesse escolhido, enquanto modelo, o rigoroso movimento do quarteto de Brahms".Há muito mais do que o espaço aqui permite para se falar sobre esse livro fantástico, provavelmente a obra-prima de reflexão crítica sobre a música no século 20, porque une o rigor de ideias com uma linguagem que não é exatamente fácil, mas bem mais acessível a públicos maiores, por exemplo os frequentadores de concertos: 1) a questão do conteúdo de verdade de cada obra musical, que se define a partir de um tipo ideal que Adorno coloca à frente do mundo administrado atual; 2) a tarefa do crítico, cujo maior pecado é justamente não ter reação alguma e cuja maior virtude é exercer essa reação, obviamente do modo mais consistente possível; 3) a descrição dos oito tipos de ouvintes musicais e a escuta estrutural; 4) sua ilusão de que o rádio e os meios de comunicação de massa poderiam alfabetizar a população e ensiná-la a ler música; 5) a ácida e adequada lição sobre o regente ("o intermediário musical por excelência", "domador de circo para os músicos, maître para o público") e a orquestra, um mundo necessariamente retrógrado (ele escrevia em 1961 que "as orquestras são como os arranha-céus de Manhattan, a um só tempo imponentes e destroçados"). Emociona, acima de tudo, o elogio à música de câmara, o "gênero mais elevado", descrita como parteira da música nova. "Tal primado tem seu lugar, antes do mais, na linguagem musical, ou seja, em um elevado grau de domínio do material. A redução do volume sonoro, assim como a renúncia a um efeito mais abrangente no gesto da música camerística, permite moldar a estrutura em suas mais íntimas células, atingindo até as menores variáveis. Por isso a ideia da música nova amadureceu a partir da música de câmara. (... A música de câmara) ainda é possível, no entanto não como preservação de uma tradição há muito esburacada, mas como uma arte de especialistas, a título de algo totalmente inútil e perdido, que tem de estar ciente de si mesmo. O que possui uma função pode ser substituído; insubstituível é apenas aquilo que não serve para nada. A função social da música de câmara é a de não possuir função." Faltou uma revisão mais acurada nessa edição crítica que tem o cuidado de colocar as palavras originais em alemão quando necessário para clarear o significado de um determinado conceito. Erros como Korngolg (Korngold); mal hábito (mau hábito) e brandeza (brandura), entre outros, precisam ser banidos na próxima edição. [/A OBRA]JOÃO MARCOS COELHO É JORNALISTA E CRÍTICO MUSICAL, AUTOR DE NO CALOR DA HORA (ALGOL)

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